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Chuva de veneno expulsa agricultores familiares e polui as águas de território indígena em MT

Texto: Julia Dolce | Fotos: José Cícero da Silva
Agência Pública

Em Confresa (MT), chuva de veneno
expulsa agricultores familiares e polui as águas do território indígena
Urubu Branco, onde vive uma comunidade de 800 pessoas

“A senhora pode aguentar tudo, resistir à pressão de todo o tipo, mas
quero ver aguentar o veneno”, ouviu Valdiva de Oliveira e Silva, hoje
com 66 anos, de um funcionário de “Gilbertão”, que queria expulsá-la de
seu lote, no assentamento Gleba Novo Horizonte, em Confresa, Mato
Grosso. O grileiro Gilberto – preso por grilagem, ameaça e uso de violência em 2009 –
foi certeiro na previsão. A agricultora, uma liderança conhecida por
suportar as ameaças de morte e agressões físicas de capangas, acabou
vencida pela chuva de agrotóxicos despejada pelas produtoras de soja
sobre os pés de pequi e laranja que lhe davam o sustento – quando as
vacas começaram a morrer, ela foi a última a deixar a casa na comunidade
de 80 famílias.

“Só não resisti ao veneno. Eu fiquei com a terrinha de 36 alqueires,
no meio de uma área de 16 mil hectares de lavoura de cana. Era avião o
dia inteiro, jogando inseticida, herbicida. Eles usavam de estratégia,
minha área virou ponto de manobra do avião, ele fazia o retorno em cima
da minha terra. O vento puxava o veneno e vinha uma chuva em cima de
nós”, relata.

O canavial deu lugar às plantações de soja da Agropecuária Três
Flechas sem que Valdiva conseguisse reaver o prejuízo – ela chegou a
registrar Boletim de Ocorrência (BO) na delegacia de polícia de
Confresa, mas nada aconteceu. O filho Moisés, então adolescente, passou a
sofrer de uma alergia que perdura até hoje. Em 2015, foi por fim
assentada na Gleba Independente I, também na zona rural de Confresa. Mas
não conseguiu fugir do veneno. Quando mudou para lá, as comunidades da
região já sofriam com a deriva (a aplicação do produto que se desvia do
alvo) do glifosato, o agrotóxico mais utilizado pelo agronegócio
brasileiro. A fazenda Luta, a maior produtora de soja transgênica da
região, fica a apenas 4 km de sua casa.

Valdiva conta que já sabia que seria cercada pela soja. “E sei também
que daqui a dez anos esses assentamentos onde estamos, onde tiver terra
plana que dá para virar soja, vai virar. Não sei como vamos viver. Aqui
já sentimos os efeitos, não sei se é da Luta, se é da fazenda que fica
aqui atrás. Mas a mandioca embola o olho todinho, fica empedradinho. As
plantas murcham, quebram, endurecem e não voltam mais”, enumera.

Valdiva, seu filho, Moisés, e seu marido, Joaquim, foram os últimos a deixar o assentamento Gleba Novo Horizonte, em 2015

Cerca de 90% do território do município de Confresa é formado por
assentamentos rurais, segundo a prefeitura. As quatro feiras semanais de
alimentos, produzidos por quase 6 mil famílias assentadas, movimentam
uma renda de R$ 3 milhões por ano. Nas palavras do secretário de
Agricultura, Meio Ambiente e Turismo de Confresa, Iranilto de Matos
Rodrigues, é essa renda que “faz a cidade girar”.

Ele próprio assentado e
ex-executor do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(Incra) do Araguaia, Rodrigues destaca que a deriva dos agrotóxicos da
fazenda Luta preocupa ainda mais porque ela fica “quase dentro” da sede
do município e “na divisa com os índios”. Ele se refere à fronteira da
Luta com a Terra Indígena (TI) Urubu Branco, um grande retângulo de
floresta transitória entre o cerrado e a mata amazônica que o povo
Apyãwa, conhecido como Tapirapé, luta para preservar. Os indígenas se
queixam principalmente da poluição das águas, já que os ribeirões passam
pela fazenda antes de se juntarem no córrego da Onça, no território
deles. “Eles têm reclamado, os agricultores têm reclamado, nossos
técnicos que têm propriedades lá ao redor também têm reclamado. Temos
que achar uma forma mais pacífica de conviver, principalmente porque
aqui acabam usando bastante a pulverização aérea”, diz o secretário.

O padre Alex Venuncio Gonçalves, coordenador da Comissão Pastoral da
Terra (CPT) no Alto Araguaia, que há anos acompanha os conflitos
fundiários resultantes da expansão da soja na região, faz uma denúncia
ainda mais grave. Segundo ele, a pulverização tem sido utilizada como
forma de expulsar os agricultores familiares, como aconteceu com
Valdiva. “Num primeiro momento, foi a luta armada, pistoleiros. Depois,
veio uma intensa judicialização, que frequentemente prejudicava os
pequenos agricultores. Hoje temos uma guerra química: as derivas de
veneno cumprem essa função, porque vão acabando com as produções dos
camponeses, gerando uma situação de empobrecimento e pressionando-os a
negociar seus lotes e sair”, diz.

Depósito municipal de vasilhames de agrotóxicos em Confresa fica na fronteira com a propriedade da Fazenda Luta

A engenheira agrônoma Polyana Rafaela Ramos, professora do Instituto
Federal de Mato Grosso (IFMT), também alerta para a seriedade da
situação. “Já ouvi muitos casos, a maioria dos assentamentos menores,
que têm terras boas para o agronegócio, tem passado por isso. Eles
ameaçam de forma velada ou diretamente com o veneno, vão comprando
propriedades ao redor, e quem aguenta? Com gado morrendo, plantação
morrendo, perdendo a saúde?”, questiona.

A fazenda Luta

Em janeiro de 2015, quando Valdiva deixava sua terra para ser
reassentada na Gleba Novo Horizonte, três de seus futuros vizinhos
registravam um Boletim de Ocorrência na Polícia Civil de Confresa contra
a fazenda Luta por abandono de substâncias tóxicas nocivas ao meio
ambiente, delito previsto na Lei dos Crimes Ambientais (Lei n°
2.848/40). Argildo Jornooki, conhecido como Russo por sua ascendência
eslava, reclamava a perda do mandiocal, da plantação de jaca e abacaxi,
que há 32 anos cultiva no lote de 13 hectares a 800 metros da sede da
fazenda Luta. O apicultor Silvestre, seu irmão e vizinho, também
atribuía à deriva do veneno da soja a morte das abelhas e a drástica
redução da produção do mel, sua principal fonte de renda. O produtor
José Valdir Duarte trazia o prejuízo no corpo, com problemas de pele
causados pela deriva da pulverização aérea.

O
agricultor Argildo Jornooki processou a Fazenda Luta, alegando que a
pulverização aérea da fazenda queimou parte de sua plantação

Um ano antes Russo, Silvestre e outros mais de 40 produtores do
assentamento se reuniram para reclamar da deriva dos agrotóxicos a
representantes da fazenda Luta. O veneno passou a afetá-los em 2013,
exatamente quando a fazenda iniciava o plantio de soja nos 40 mil
hectares comprados em 2012 da antiga Destilaria Gameleira, que foi à
falência depois do resgate de 1.400 trabalhadores em trabalho análogo à
escravidão. O gerente da fazenda Luta, Fernando Luiz Canan, genro do
proprietário, Vítor Elísio Poltronieri, fez então um acordo informal com
os agricultores. Russo diz que recebeu R$ 40 mil da fazenda, e o irmão,
R$ 2 mil, além da promessa do gerente de que a deriva dos venenos seria
controlada. Mas no ano seguinte a deriva foi ainda mais forte e o
prejuízo maior, como vem ocorrendo até agora, dizem os agricultores.

Entre as propriedades que detinha na região, antes de comprar as
terras da Gameleira, o catarinense Vitor era dono da madeireira
Poltronieri Madeiras, no município de Sinop, e de uma transportadora, processada em
2009 e condenada em primeira instância por transporte irregular de
madeira (o empresário recorreu e o processo está na Turma Recursal Única
de Cuiabá). Poltronieri também foi processado pelo
Ministério do Meio Ambiente acusado de desmatar 2.838,58 hectares no
município de Ipiranga do Norte (MT) (condenado por Dano Ambiental em
primeira instância, ele recorreu, e o processo está suspenso). A família
tem fazendas em Ipiranga e em Sinop, onde o seu genro e gerente,
Fernando Canan, foi condenado em outubro de 2018 em um processo administrativo por desmatar mais de 500 hectares de vegetação nativa.

De acordo com um ex-funcionário da fazenda Luta, que pediu para não
ser identificado pela reportagem, era Fernando que comandava as
pulverizações de agrotóxicos, embora a legislação exija que esse
trabalho seja feito por um engenheiro agrônomo. O funcionário, que
trabalhou na fazenda entre 2014 e 2018, disse que, embora as
propriedades da família Poltronieri no Mato Grosso sejam supervisionadas
por um mesmo engenheiro agrônomo, ele raramente acompanhava a fazenda
Luta. “Eles [o gerente e o agrônomo] se comunicavam por e-mail, mas
quase o ano todo quem determinava as aplicações era o Fernando”, na
dosagem que “era conveniente para ele” e sem “seguir regras”, afirmou.

Agência Pública teve acesso a uma perícia do
Instituto de Defesa Agropecuária do Estado do Mato Grosso (Indea), de
fevereiro de 2015, em que o engenheiro agrônomo e fiscal Kleube Pereira
de Souza constatou a “utilização de agrotóxicos em desacordo com as recomendações constantes”,
em receitas assinadas pelo agrônomo responsável pela fazenda Luta. “Os
produtos Zapp QI 620, Nomolt 150 e Talstar 100 foram aplicados com dose
ou cultura em desacordo com o recomendado.” O primeiro produto,
patenteado pela Syngenta, é um herbicida classificado pela Associação
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) como pouco tóxico. O segundo e
o terceiro são inseticidas, respectivamente classificados como pouco e
medianamente tóxicos.

A fazenda Luta não retornou as tentativas de contato presencial, telefônico e por email da Pública,
que também não conseguiu falar com o proprietário da fazenda, Vítor
Poltronieri, nem com o gerente, Fernando Canan. Em declaração anexada na
ação civil pública aberta pelo Ministério Público Federal (MPF) em
decorrência das denúncias dos agricultores, o advogado da fazenda Luta,
Mário Sérgio dos Santos Ferreira Júnior, afirma que as aplicações feitas
em torno dos agricultores se limitaram a fungicidas, e não herbicidas, o
que impossibilitaria os danos alegados.

Pesca em ribeirão próximo à fronteira com a Fazenda Luta: indígenas Tapirapé dizem que córrego está contaminado

Evidências e lapsos

Amargando os prejuízos na roça e na saúde, os agricultores voltaram a
procurar a Luta no ano seguinte. Dessa vez, ouviram que não tinham como
provar que o prejuízo era causado pela fazenda e que, se quisessem
reclamar, que entrassem na Justiça. Foi quando eles lavraram o BO, que
não resultou em nenhuma investigação. Procuraram então um advogado, mas,
segundo eles, ninguém queria pegar o processo. “Todo mundo tinha medo


[da fazenda Luta]

, eles são grandes”, diz Russo.

Finalmente, em setembro de 2017, o advogado Luiz Octávio Moraes
Martins aceitou representar o caso, e o inquérito policial 91.371 foi
aberto para investigar as denúncias na Polícia Civil de Confresa. Em
maio deste ano, a investigação chegou ao gabinete do juiz do Fórum da
Comarca de Porto Alegre do Norte, segundo informou a assessora do juiz.
Possivelmente, porém, o caso será arquivado, como recomenda uma minuta do Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE) anexada ao processo consultado pela Pública no
Fórum de Porto Alegre do Norte. A justificativa do MPE é que não “se
vislumbra comprovação da materialidade delitiva”, já que não houve laudo
pericial para atestar as denúncias.

Pela mesma razão, o inquérito civil sobre o caso, aberto
paralelamente ao inquérito policial, também em 2017, na 1a Promotoria de
Justiça Cível de Porto Alegre do Norte foi arquivado em maio deste ano.
O promotor Marcelo Rodrigues Silva pediu arquivamento por
ausência de laudo de dimensão dos prejuízos ambientais e do auto de
infração. Segundo o promotor, “diante do lapso temporal decorrido”
qualquer tentativa de apuração dos fatos seria “frustrada”.

No processo consultado pela Pública, porém, há laudos periciais feitos
pelo Indea, comprovando sintomas de contaminação nas plantas dos
agricultores. “Esses sintomas assemelham-se à fitotoxidez ocasionada por
herbicidas sistêmicos”, afirma o documento, assinado pelo engenheiro
agrônomo Reinaldo Moraes da Silva.

Mas, segundo o MPE, para que o processo fosse adiante, o advogado das
partes teria que ter pedido perícia à Secretaria de Estado de Meio
Ambiente (Sema), o que não fez. A Pública procurou Luiz Otávio Moraes Martins, mas ele não quis falar com a reportagem.

Para Russo, as provas do caso são “visíveis”. “Tem foto, testemunha,
tá tudo bem montado. Mas não se acredita, não.” Em um grande espaço de
seu lote, o agricultor deixa os restos do abacaxi que não vingou como
prova da intoxicação. “Sempre achei que alguém fosse vir ver.”

Águas tapirapés

A engenheira agrônoma Polyana Rafaela Ramos, professora do IFMT, diz
que a irresponsabilidade na aplicação de agrotóxicos nas fazendas é o
mais comum. Mas, mesmo quando a pulverização é feita com cuidado, a
deriva é inevitável, destaca. “Se não fizer as precauções, ela vai
atingir velocidade e distâncias maiores, mas sempre vai existir. Aqui na
região venta bastante, a deriva chega a quase 30 km. Não tem como
controlar, mesmo com trator. Você diminui, mas acabar não acaba, é
mentira”, afirma, categórica.

Polyana é mestre em ciências ambientais e, em sua dissertação,
estudou as práticas agrícolas do povo Tapirapé. Segundo ela, os
indígenas estão sofrendo com a deriva dos agrotóxicos especialmente pela
contaminação dos córregos. “Não temos estudos que comprovem, até porque
estudos que buscam indícios de agrotóxicos são caríssimos e
pouquíssimas universidades hoje dispõem dos equipamentos necessários.
Mas os córregos correm dentro da Luta e temos o etnoconhecimento, o
relato da população, e prontuários médicos que dizem que pessoas tiveram
intoxicação provavelmente causada por químicos na região, que coincidem
com aplicações na região”, explica.

“A gente percebe o cheiro através do vento e aí dá sintomas de gripe.
Mas temos fontes de ribeirão, que saem e entram no território. Todos os
venenos vêm junto com a água, contaminam o lençol freático e também
podem prejudicar, mesmo futuramente, a saúde do nosso povo”, diz o
cacique Kamoriwai’i Elber Tapirapé, que acompanhou a reportagem da Pública em uma visita de dez dias às aldeias.

O cacique conta que há cerca de dois anos os Tapirapé procuraram a
fazenda Luta para pedir que as aplicações fossem feitas mais longe da
fronteira com a Urubu Branco. “Falaram que eles jogam, mas não é
problemático para o ser humano, que é só pra matar insetos que dão na
lavoura”, diz Kamoriwai’i, que continuou preocupado. “A gente tem
conhecimento que muitos estudos mostram como eles prejudicam o ser
humano. Sabemos que muitas vezes não é imediato, leva tempo.”

Para os pajés, os primeiros a serem procurados pelos Tapirapé quando
adoecem, a contaminação da água já está prejudicando a saúde das
pessoas. Enquanto nos explica como cura seus pacientes, fumando e
passando as mãos sobre eles, Marlene Tapirapé, pajé de 48 anos, diz
devagar em português: “O branco joga lixo dentro da água e a água faz
mal para a pessoa. A pessoa chega ruim do rio, dá dor de barriga.
Antigamente não era assim não, agora o branco tá perto e tá trazendo
mais doenças. Quando eu não sei a cura para o mal dos brancos, mando
para o hospital”, diz. Marlene e seu filho Namoré, também pajé, vivem na
aldeia Wiriaotawa, que fica bem próxima ao rio Tapirapé.

Pajé Marlene Tapirapé acredita que contaminação de rios tem prejudicado a saúde de seu povo

O agente de saúde indígena Arawy’i Jackson Tapirapé, que trabalha há
13 anos no posto da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) na Urubu
Branco, conta que as principais doenças que acometem os cerca de 800
moradores da TI são resfriados e diarreia – o que, segundo ele, é
resultado do aumento do consumo de produtos industrializados pela
população indígena e do contato com água contaminada. “Tudo ao redor das
aldeias é plantação de soja e milho com agrotóxicos, isso nos afeta
muito. Muitos produtos são jogados, caem no rio Tapirapé, os peixes
consomem e nós consumimos os peixes. Nos contaminamos também
indiretamente”, explica, acrescentando que os principais afetados são
idosos e crianças.

A Secretaria de Saúde de Confresa não respondeu às inúmeras
tentativas da reportagem de ter acesso a laudos de intoxicação por
agrotóxicos. Dados do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade
da Água para Consumo Humano (Sisagua), do Ministério da Saúde,
publicados pelo site Por Trás do Alimento, uma parceria entre a Pública e a Repórter Brasil,
porém, mostram que entre 2014 e 2017 todos os 27 agrotóxicos testados
pelo órgão foram detectados na água que abastece Confresa. A água da
cidade é abastecida pelo córrego Cacau, que cruza a fazenda Luta. Além
disso, 19 agrotóxicos foram detectados acima do limite considerado
seguro na União Europeia, entre eles, justamente, o glifosato.

Posto da Secretaria de Saúde Indígena na T.I Urubu Branco

Produtores quebrados

Confresa é repleta de lojas de produtos agrícolas e revendedoras de
insumos – é a soja que fez a população, atualmente de 30 mil habitantes,
aumentar 4,7% ao ano, uma das maiores taxas de crescimento urbano do
estado. A cidade funciona como dormitório para os caminhoneiros que, com
o asfaltamento da BR-158, conhecida como uma das estradas da soja,
aguardam para levar o produto para o porto de Itaqui no Maranhão, de
onde é exportado.

Trata-se de um ciclo de desenvolvimento que não beneficia a população
local, como observa o padre Alex. “Há o asfaltamento da BR-158, a
chegada do linhão da energia elétrica. Isso, claro, é desenvolvimento
para a região, mas vem dentro de uma lógica que não é para ligar cidades
ou favorecer as populações que aqui habitam, mas em uma estrutura
voltada para a soja. E o agronegócio das monoculturas em grande escala é
voltado para a exportação, sobretudo para a China e para os Estados
Unidos”, explica.

Em Confresa, somente no último ano foram abertas 10 novas revendedoras de agrotóxicos

A reportagem conversou com Matheus Simões, funcionário da revendedora
de agrotóxicos Brasil Rural, cuja principal parceira é a Bayer, antiga
Monsanto. A loja, montada há três anos e meio, é uma das pioneiras no
município. De acordo com Simões, só no ano passado foram abertas outras
oito revendedoras de agrotóxicos na cidade; e no primeiro semestre deste
ano, mais duas. O vendedor disse que, entre os herbicidas, o glifosato é
o mais vendido. Patenteado pela Monsanto nos anos 1970, o produto já
foi relacionado ao desenvolvimento cancerígeno por uma série de
pesquisas ao redor do mundo. Apenas nos Estados Unidos, a Bayer já soma
mais de 18 mil processos contra o uso de glifosato.

A aplicação por aviação agrícola de alguns herbicidas, como o 2,4-D,
que costuma ser aplicado em conjunto com o glifosato, é proibida no
Brasil. A pulverização aérea de agrotóxicos permitidos também é
restringida a menos de 500 metros de povoações e 250 metros de rios e
áreas de mananciais, o que é considerado insuficiente para garantir a
saúde da população, segundo a Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(Abrasco), que defende a proibição da pulverização aérea em todo o país.

Em audiência pública na Assembleia Legislativa do estado, no último
mês de abril, o médico Wanderlei Pignati, professor do Instituto de
Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e
pesquisador da Abrasco, apresentou um dado impressionante: a exposição
ao agrotóxico no Mato Grosso é quase dez vezes maior do que a média
nacional, de 7,3 litros por pessoa. Pignati conduziu uma pesquisa no
município de Lucas do Rio Verde (MT), entre 2007 e 2014, cujo resultado
apontou a presença de agrotóxicos até mesmo no leite materno. Um mês
depois dessa audiência pública, a Assembleia Legislativa do Mato Grosso
deu parecer contrário ao Projeto de Lei 484/2019, que propunha a
proibição da pulverização aérea no estado. Segundo dados da Associação
dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT),
mais de 30% da área plantada com soja no MT utiliza aviação agrícola, e o
estado possui a maior frota de aeronaves agrícolas do país, 494
unidades ao todo.

Enquanto isso, os agricultores familiares continuam sofrendo com o
uso abusivo – quando não mal-intencionado, como denunciou o padre Alex –
dos agrotóxicos. Para o agricultor Russo, por exemplo, a perda da
produção por anos consecutivos acarretou na impossibilidade de continuar
a pagar o tratamento de sua filha Cátia, de 27 anos, que ficou
tetraplégica em um acidente de ônibus em 2008. A indenização da viação
Xavante até hoje não foi recebida pela família. “Se não me atrapalhar,
eu tiro até R$ 100 mil no ano. Mas os anos que eu mais produzi, que mais
ia crescer, eles me derrubaram. Fiquei quase um ano sem colher. Gastava
R$ 3.500 por mês com o tratamento dela em Cuiabá, tava difícil eu
trabalhar e pagar pra ir lá visitar. Tô quebrado, não tem saída. Agora
ela faz tratamento aqui no hospital de Confresa”, lamenta. Seu irmão, o
apicultor Silvestre, também perdeu sua maior fonte de renda: a produção
de mel, que chegava a 2 litros de mel por colmeia/ano.

Silvestre, Valdiva e outros agricultores familiares estão
participando de um curso de agroecologia promovido pela Secretaria de
Agricultura e Meio Ambiente de Confresa, em parceria com o IFMT, para
assentados e indígenas. Em uma visita à TI Urubu Branco, Valdiva
constatou que os prejuízos unem indígenas e agricultores familiares.
“Todas as nações que estão aqui, fazendo todos os tipos de agricultura
familiar, tão sendo punidas do mesmo jeito. Para nós, o veneno é um
fracasso”, diz.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei que investiga violência relacionada à regularização fundiária, demarcação de terras e reforma agrária na Amazônia Legal