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A burocracia da “reforma agrária”

Em junho passado, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 354, dizendo que “A invasão do imóvel é causa de suspensão do processo expropriatório para fins de reforma agrária”. O que isso traz de novo é apenas mais uma confirmação de que não existe uma política de reforma agrária por parte do Estado brasileiro.

A democratização da terra no Brasil é uma tarefa antiga e pendente ao longo dos últimos 500 anos da história do país. Afinal, ter uma terra para nela morar, trabalhar e desenvolver sua prole não é apenas um direito do povo, mas uma condição para o real desenvolvimento econômico do país.

De nada serve o discurso latifundiário de progresso no campo, a partir das propagandas de elevação da produção agrícola e da febre dos chamados biocombustíveis, defendendo a expansão da monocultura da cana-de-açúcar, entre outras, sob o pretexto de que levará ao desenvolvimento.

Uma das condições para resolver o problema do desenvolvimento, seja ele expresso como desenvolvimento econômico ou social, é a democratização da terra. E ela é contraditória com a permanência do sistema latifundiário, esteja ele produzindo cana ou qualquer outra coisa, sem falar que a cana-de-açúcar está literalmente matando e escravizando os camponeses brasileiros, o que passa bem longe dos dados oficiais e da propaganda dos biocombustíveis.

A “reforma agrária” que se oferece

A reforma agrária pode ser definida como o conjunto de políticas, implementadas de forma planejada pelo Estado (ou seja, dentro da legalidade estatal), que levariam à democratização do acesso a terra.

Na prática, a “reforma agrária” do Estado brasileiro, nos últimos 20 anos, tem sido um emaranhado de medidas burocráticas que servem para humilhar os camponeses pobres, que tanto almejam a conquista da terra, e, de outro lado, enriquecer latifundiários.

A Constituição Federal de 1988 condensou a política de reforma agrária num sistema de “desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária”, em que o Estado, ao desapropriar latifúndios para gerar assentamentos, o faz pagando um “justo preço” aos latifundiários, ou seja, indenização no valor de mercado. Diz ainda que a terra nua seria paga em Títulos da Dívida Agrária (TDAs) e as benfeitorias em dinheiro vivo.

A Constituição afirmou ainda que a terra considerada tecnicamente como “produtiva”, independentemente do seu tamanho, não pode ser desapropriada.

Em 1993, uma Lei Federal (Lei n. 8.629/93) instituiu uma série de etapas burocráticas necessárias para se chegar até a desapropriação, e a formação de um assentamento de reforma agrária, iniciando-se com uma vistoria do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), mas com notificação prévia ao proprietário do imóvel a ser vistoriado. Na prática, o INCRA se compromete a fazer inúmeras vistorias, que vão ficando sempre adiadas em razão da “sobrecarga” de trabalho dos técnicos daquele órgão.

A vistoria deveria ser para verificar se a fazenda cumpre os requisitos da função social da propriedade (social, ambiental e econômica), mas na prática acaba se limitando a verificar se o imóvel é produtivo ou não, dentro de cálculos absurdos, baseados numa Instrução Especial do INCRA de 1980, baseadas por sua vez no Censo Agropecuário de 1975. Em outras palavras, o INCRA avalia a produtividade de um imóvel hoje com critérios do que seria considerado “produtivo” em 1975.

Depois de tudo isso, se o imóvel for qualificado como “improdutivo”, em laudo técnico de vistoria, a questão é levada ao Presidente da República, para que assine decreto declarando o imóvel de interesse social para fins de reforma agrária.

Passa-se então à avaliação do imóvel para estabelecer o valor das indenizações ao proprietário. Depois do decreto presidencial, o INCRA tem até dois anos para entrar com ação de desapropriação na justiça, senão o decreto se perde.

Na ação na justiça, o juiz determina a imissão e passa a selecionar as famílias cadastradas, e implantar o assentamento.

Se esses mecanismos burocráticos já afastam o camponês do direito a terra, a questão se complica ainda mais com alguns detalhes:

1. A terra que for ocupada fica sem poder receber vistoria até dois anos após o fim da ocupação;

2. Em todo o processo de desapropriação, e até depois dele, há várias estratégias utilizadas pelos latifundiários para reverter o processo e retomar a terra;

3. A terra não é dada ao camponês, a lei diz que ele ao final tem de pagar pela terra que recebe em reforma agrária;

4. Agora, com o novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, o processo de desapropriação, depois de já iniciado, é suspenso, se a terra for “invadida”.

A solução do conflito

Entre 1964 e 1995, o órgão do governo federal responsável pela reforma agrária desapropriou 3% das terras identificadas como improdutivas. Apenas a título ilustrativo, se esse dado fosse estendido de forma linear, o Estado gastaria mais de 1000 anos para desapropriar as terras identificadas por ele mesmo como improdutivas.

Esse é o caminho da “reforma agrária” do Estado brasileiro. Com ela, os governantes querem convencer os camponeses de que eles podem se cadastrar no INCRA e esperar, na beira das rodovias ou na miséria absoluta, que o governo lhes dê terra. Já falaram até em “reforma agrária pelo correio”, naquela época em que o slogan do governo federal era “pra quê invadir, se a porteira está aberta?”.

Na ânsia de preservar o sistema latifundiário, que tem como base o discurso da sacralização do direito de propriedade, os três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) empenham-se em criar mecanismos para impedir a marcha natural dos camponeses pobres pela sobrevivência.

Se, por um lado, oferecem a “reforma agrária” como uma burocracia interminável, por outro lado, tentam a todo custo impedir as ocupações de terras.

O problema é que as ocupações de terras jamais acabarão com mecanismos formais meramente repressivos. Não é uma questão de vontade de qualquer uma das partes no conflito. As ocupações, além de serem motivadas por necessidades de sobrevivência, são a própria realização da democracia pelos camponeses pobres.

Leis, Medidas Provisórias, decisões judiciais, decretando o fim das ocupações de terra, não resolvem o problema agrário no Brasil. Tampouco a violência institucionalizada, praticada pelos aparatos militares e outras autoridades encarregadas da repressão, resolveria.

O trato do Estado com o problema agrário ainda é um complexo de “conflitos idealizados pelo sistema, são afastados sem serem resolvidos”.

Essa prática de afastar o conflito sem resolvê-lo, a médio e longo prazo, só acentua a crise, ficando o poder oligárquico ainda mais ameaçado. Constitui um conflito de classes de amplitude nacional, um conflito “macro possessório”.

Uma coisa é o problema agrário tal como no discurso de autoridades estatais. Ali, existe uma “reforma agrária” idealizada, um único caminho que os camponeses devem seguir que é esperar o benefício do governo. Outra coisa é o mundo real dos conflitos agrários, das disputas possessórias, das doenças, da fome, das mortes, das prisões, enfim, da negação da dignidade humana aos cidadãos brasileiros.

Diante disso, não há como negar aos camponeses o direito de se organizar, lutar e assumir seu destino em suas mãos, fazendo na prática a destruição do latifúndio.


Dr. Júlio da Silveira Moreira – Formado em Direito pela Universidade Federal de Goiás, tendo concluído curso de especialização em Direito Agrário na UFG. Atualmente é advogado em Goiânia-GO,e membro NAP – Núcleo de Advogados do Povo.
1. Dados do livro Desobediência Civil e Direito Político de Resistência, do advogado Geovani Tavares. Campinas: Edicamp, 2003, p. 7
2. Expressão criada pelo juiz Dyrceu Aguiar Dias Cintra Jr., membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). In: STROZAKE, Juvelino José (Org). A questão agrária e a justiça. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000. p. 292-302.
3. Expressão do Prof. Sérgio Sérvulo da Cunha. In: STROZAKE, Idem, p. 249-276.