MS: Procurando deter retomadas, polícia prende injustamente três Guarani-Kaiowá em Rio Brilhante

Reproduzimos abaixo notícia veiculada em 14 de março de 2023, em www.anovademocracia.com.br

MS: Procurando deter retomadas, polícia prende injustamente três Guarani-Kaiowá em Rio Brilhante

O rezador (ñanderu) Olímpio, de 83 anos, e sua filha, a professora Clara, na retomada Laranjeira Nhanderu. Ele foi atingido por duas balas de borracha e ela foi detida. Foto: Folha de São Paulo

Na madrugada do dia 3 de março os Guarani-Kaiowá retomaram mais uma parte da aldeia Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante, cidade a 100km de Dourados, segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul. Os indígenas estão na região desde 2008 e vivem em uma pequena faixa de terra. O território recentemente ocupado é a sede da fazenda Inho, localizada no Território Indígena (TI) que aguarda demarcação há mais de 15 anos. Horas depois da retomada, a mando do governador reacionário Eduardo Riedel (PSDB), a Polícia Militar do Estado de Mato Grosso do Sul feriu covardemente dois indígenas com bala de borracha e deteve injustamente três lideranças após adentrar o território, de forma ilegal – sem mandado judicial e se sobrepondo a competência da justiça federal.

A Retomada Laranjeira Nhanderu é um território historicamente reconhecido como dos Guarani-Kaiowá e conta com uma promessa de demarcação desde 2007. Apesar disso, os indígenas ainda não conseguem usufruí-lo em sua totalidade de forma livre, vivendo em uma pequena porção de terra. Expressão disso foi a recente repressão sofrida pelos Guarani-Kaiowá. Na ocasião, os indígenas avançaram para a localidade em que tradicionalmente havia uma casa de reza (ogá pysy) – uma delas foi atacada em 2020 – para a realização de uma cerimônia ritual que acontece a cada três anos. Ao chegarem, as 15 famílias foram brutalmente reprimidas pela PM e jagunços do latifúndio. Os indígenas tiveram suas tendas removidas da retomada e seus bens (desde motos até bicicletas e carriolas) apreendidos, conforme relataram ao correspondente do AND no local.

Carros da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul, que foram mobilizados de cidades vizinhas a Rio Brilhante, e realizaram ação ilegal em conjunto com jagunços do latifúndio. Foto: Cimi

A repressão começou por volta da hora do almoço, quando cerca de 13 militares da PM chegaram em quatro carros vindos de duas cidades vizinhas (Dourados e Maracaju). Logo na chegada, as tropas militares quase atropelaram vários indígenas e dispararam balas de borracha e bombas de efeito moral contra idosos e crianças de colo. Olímpio, uma liderança de 83 anos, foi atingido duas vezes; já outra indígena, tentando tirar sua filha do meio do confronto, também levou um tiro.

Durante a repressão, os militares detiveram, sob a falsa acusação de “esbulho possessório”, além de alegada “resistência” à prisão, o cacique Adalto (Ava Rendy) e a professora Clara (Mboy Jeguá), ambos filhos de Olímpio, figuras de destaque da retomada e conselheiros do Aty Guasu e do Kuñange Aty Guasu. Além disso, o jovem cinegrafista e membro da retomada, Aty Jovem Lucimar “Lucas” Gualoy (Ava Jeguaka), também foi detido por “desobediência”. A acusação foi baseada na postura do jovem em se recusar a parar a filmagem que fazia da criminosa ação policial. Segundo os indígenas, os policiais da região atuaram na repressão junto com “seguranças privados” (pistoleiros) do latifúndio, que roubaram motos dos Guarani-Kaiowá e as mantiveram em um galpão da fazenda Inho.

Os três detidos foram para a 1ª Delegacia de Polícia Civil de Rio Brilhante e tiveram seus pertences restantes apreendidos (inclusive o celular onde Gualoy havia gravado a repressão). Frente a isso, a mãe e o tio do jovem foram até a delegacia, denunciaram a arbitrariedade da detenção e afirmaram que, se os presos não fossem postos em liberdade, membros da sua aldeia (Tajasu Iguá, em Douradina) iriam se juntar a retomada em solidariedade aos Guarani-Kaiowá de Rio Brilhante. Como resultado da mobilização, os indígenas permaneceram na terra até a soltura dos três detidos, que ocorreu no dia seguinte. Contudo, apesar da revogação das prisões preventivas, a Polícia Civil manteve medidas cautelares contra os indígenas.

Ainda como prosseguimento e resultado da luta do povo Guarani-Kaiowá, foi dado o anúncio do avanço do processo de demarcação e de perícia antropológica. Em sinal de solidariedade e de que pretendem avançar em sua luta, os Guarani-Kaiowá afirmaram que vão realizar, com lideranças de todo o Mato Grosso do Sul, a Grande Assembleia Guarani-Kaiowá (Aty Guasu) em Laranjeira Nhanderu. A assembleia ocorrerá entre os dias 06/03 e 10/03.

Em solidariedade ao avanço da retomada e aos ataques do velho Estado, os Guarani-Kaiowá decidiram realizar sua Grande Assembleia em Laranjeira Nhanderu. Foto: Aty Guasu

O processo da retomada

Em 2007, a aldeia Laranjeira Nhanderu foi incluída no Termo de Ajustamento e Conduta (TAC), um plano de estudos para a demarcação de terras feito pelo Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Segundo o planejamento do TAC, a demarcação de Laranjeira Nhanderu (localizada dentro da TI Brilhantepegua) está atrasada há, pelo menos, 14 anos (o prazo máximo para demarcação era o ano de 2009).

Em 2008, diante da inoperância do velho Estado, 167 indígenas da comunidade ocuparam uma pequena área de mata nos fundos da fazenda Santo Antônio, em Rio Brilhante, que faz divisa com a fazenda Inho. No ano seguinte, foram expulsos por ordem judicial e ocuparam as margens da BR-163, mas retomaram novamente o território em 2011. À época, o governo do Estado estava sob gestão de André Puccinelli (então PMDB), que tinha como vice-governadora Simone Tebet, atual ministra do Planejamento e Orçamento. Em 2017, os indígenas denunciaram a ineficácia do velho Estado brasileiro no processo de demarcação de sua terra em uma reportagem breve do Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul. Um ano depois, eles avançaram para a área denominada Laranjeira Nhanderu II. Ano passado, os Guarani-Kaiowá resistiram bravamente a uma tentativa de despejo realizada após uma retomada na sede da mesma fazenda Inho.

Mapa feito pelos Guarani-Kaiowá da TI Laranjeira Nhanderu; em vermelho, a fazenda Inho, local do atual conflito, e, em verde, a fazenda Santo Antônio, cujos fundos tem sido habitado pelos indígenas. Foto: Repórter Brasil

De acordo com os Guarani-Kaiowá, a verdadeira razão do conflito envolvendo a área é o interesse do filho do dono da fazenda Inho, José Raul das Neves Júnior, em vender as terras para o vereador Adão Evandro Pereira Leite (DEM). José Raul também é secretário municipal do Partido dos Trabalhadores (PT) de Rio Brilhante, foi secretário da Fundação de Cultura, Esporte e Lazer entre 2013 e 2016 e trabalhou com o pai do atual prefeito da cidade, Lucas Foroni (MDB). Em 2011, segundo noticiou o monopólio de imprensa local Dourado News, José Raul e seu pai tentaram interceptar o trabalho da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em sua fazenda ao bloquear o acesso com um tronco de árvore.

Policiais e governador se contradizem

Na tentativa de esconder o verdadeiro motivo do conflito, a PM e o governo do estado se contradisseram ao dar, cada qual, sua versão sobre o caso. Na ocasião, a corporação alegou, em nota, que foi até o local porque um grupo de 15 pessoas invadiu a fazenda e, “de forma agressiva, expulsaram os funcionários” e roubaram um botijão de gás.

Já o governador reacionário Eduardo Riedel (PSDB), segundo o monopólio de imprensa Folha de São Paulo, autorizou a ação policial “para garantir a ordem e salvaguardar vidas” com base na falsa história de que haveria um conflito entre indígenas e camponeses sem-terra no local, o que também alegou em nota a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp). A justificativa se baseia na manobra de 2022 em que se tentou criar um falso “assentamento rural” nas terras dos Guarani-Kaiowá a partir de investidas da deputada estadual Mara Caseiro (PSDB), do vereador Adão Evandro e de seu pai, Ramão Alves Leite, em conluio com o dono da fazenda Inho, Raul das Neves, e com a autarquia estadual Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer). Na manobra, eles fizeram promessas para moradores de outro assentamento e chegaram a falar em uma ocupação de sem-terras em 2022, o que nunca ocorreu. No dia 03/03 deste ano, quando da última tomada dos Guarani-Kaiowá, não havia nenhum camponês sem-terra no local, conforme pôde averiguar o correspondente local do AND.

Durante a sua campanha eleitoral de 2022, Riedel afirmou demagogicamente em “ouvir e entender” os indígenas, comentou do “desafio de vivermos todos em paz” e que buscaria viabilizar um “desenvolvimento econômico para estas comunidades”. Na prática, o governador que diz que “índios e produtores são vítimas” foi apoiado por 50 sindicatos rurais representantes do latifúndio e que constantemente açoitam os povos indígenas do estado. Em seu discurso oportunista e pró-latifúndio, Riedel equipara o latifúndio aos indígenas e levanta propostas de “levar a questão de desenvolvimento”, sem tocar no assunto na demarcação de terras.

 

Confira a nota publicada pelo Comitê de Apoio a Luta dos Povos Indígenas (CALPI) em 14 de março de 2023

Contra o latifúndio, a criminalização e o oportunismo: Avançar as retomadas!

Povo Guarani-Kaoiwá decide avançar em retomada

No dia 3 de março, os indígenas Guarani-Kaiowá retomaram mais uma parte da sua aldeia Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante, a 80km de Dourados, a segunda maior cidade do Mato Grosso do Sul. Diante desse avanço, os latifundiários locais – via governador Eduardo Riedel (PSDB) – acionaram a Polícia Militar, que feriu, pelo menos, dois indígenas com balas de borracha e deteve três lideranças. Isso não parou os Guarani-Kaiowá; ao contrário, como resposta, convocaram outras lideranças para avançarem na luta. Foi o que aconteceu na passagem do dia 07/03 para o dia 08/03, quando eles, até então nas margens das plantações de sojas já colhidas, tomaram a sede da fazenda do Inho, de propriedade de José Raul das Neves Júnior, o “Raulzinho”, dirigente municipal do PT daquela cidade. Diante disso, os indígenas foram fustigados por drones, jagunços rodearam a propriedade e pessoas em caminhonetes na rodovia tentaram intimidá-los de várias maneiras.

Essa retomada Guarani-Kaiowá é expressão do avanço da luta popular e combativa no campo, já visto nas várias tomadas de terras camponesas (no Pontal do Paranapanema, em SP, e nos estados da Bahia e Rondônia) e indígenas (em Jopara, Guapo’y e Kurupi) do ano passado e do começo desse. Isso desperta um claro medo nas classes dominantes deste Estado burocrático-latifundiário, o que ficou totalmente escancarado no dia 09/03 durante sessão da Assembleia Legislativa do Estado do Mato Grosso do Sul. Nela, o deputado reacionário Pedro Pedrossian Neto (PSD) – representante das históricas oligarquias latifundiárias sul-mato-grossenses – e o oportunista Zeca do PT – latifundiário em Dois Irmãos do Buriti e Porto Murtinho e filiado ao sindicato rural – manifestaram todo ódio das classes dominantes perante o inevitável levante das massas.

Pedrossian Neto começa sua fala se dizendo preocupado com uma movimentação no estado e no país que ameaça o “modelo de sucesso” do MS de “prosperidade e geração de empregos e riqueza na cidade e, principalmente, no campo”. Diz ele que são ameaças para a “paz social” do estado a retomada indígena e as recentes ocupações de terra promovidas pela Frente Nacional de Lutas (FNL) durante o “Carnaval Vermelho”, que no estado atingiu a cidade de Japorã – onde, inclusive, houve um ataque coordenado do latifúndio e de paramilitares da extrema-direita bolsonarista, algo que o deputado evidentemente não mencionou. Vale ressaltar que decorrente desta luta estão presos Zé Rainha e mais duas lideranças da FNL, como tentativa de paralisar as ocupações de terras.

Ora, a que modelo e a que paz se refere o deputado que, em outro momento, disse desejar continuar o legado e histórico do avô? O falecido Pedro Pedrossian foi governador do Mato Grosso uno entre 1966 e 1971 e depois o segundo governador do MS entre 1980 e 1983, nomeado pelo general João Figueiredo, sendo que Ernesto Geisel tinha sugerido que ele fosse o primeiro governador do recém-criado estado em 1977. Logo, pode-se deduzir apenas que a proclamada paz seja a paz de cemitério, a mesma do genocídio contra os indígenas reveladas pelo Relatório Figueiredo (1967) e o mesmo que matou Marçal de Souza há quase exatos 40 anos.

Já o “nobre deputado” Zeca do PT, como o chamou Pedrossian Neto, convidou o dono da fazenda para conversar com eles. Depois de saudar a fala do deputado do PSD, disse que o “companheiro, amigo Raul” estava sendo submetido a uma “barbaridade”. Zeca chamou a retomada de “vergonha” e, falsificando a realidade, disse que “não tem nenhum estudo antropológico” que ateste a posse dos Guarani-Kaiowá. Enfatizou que, “como deputado do PT”, não defenderia quem “ocupa e invade propriedades produtivas, gerando uma insegurança jurídica”, mesmo termo usado por Pedrossian e balbuciado pelos liberais de todas as estirpes. Por fim, afirmou que foi a Brasília conversar com o presidente e conclui que “Lula [está] preocupado com isso, tem manifestado [que] não concorda com isso. Quer fazer assentamento, mas comprando propriedade e não ocupando”.

Para alguns, o posicionamento de Zeca pode parecer uma surpresa. Porém seu oportunismo não é novidade: ele já manifestara semelhante posição há quase 20 anos – em 2004 – quando era governador do estado. À época, declarou que a então Fundação Nacional do Índio (hoje Fundação Nacional dos Povos Indígenas; Funai) estava incentivando retomadas em Japorã, trazendo indígenas de outro estado e do Paraguai “para engrossar esse conflito”. Vê-se que Zeca acredita que os Guarani-Kaiowá são manipulados por forças externas e não consegue enxergar as condições objetivas próprias da vida que empurram esse povo para lutar. Não enxerga ou, melhor, se alia aqueles que são o motivo deles lutarem: aos latifundiários. Destacamos que o mesmo, quando governador do estado, se negou a entregar cestas básicas para indígenas que estavam em retomada, como forma de “punição”. Também, quando do massacre de Caarapó, em 2016, foi com outros oportunistas chorar suas lágrimas de crocodilo sob o féretro do guerreiro Clodiodi, enquanto os governos petistas, a nível estadual e federal, sempre favoreceu o latifúndio quando das famigeradas reintegrações de posse.

Buscado por reportagens, o latifundiário e oportunista Zeca do PT reafirmou sua posição: “Aos que me atacam por minha posição em defesa da legalidade, saibam que essa também é a posição do governo Lula […] Tanto eu quanto o governo Lula estamos 100% comprometidos com a reforma agrária e a demarcação de terras indígenas. Porém, não será com ocupações ou invasões que vamos contribuir com esse processo.” disse em seu Instagram (negrito nosso).

Suas falas, embora repletas de mentiras e absurdos, serve para os Guarani-Kaiowá e seus apoiadores reafirmarem uma máxima conhecida da luta de classes: nenhum governo demarcou nem demarcará as terras indígenas, nem entregou de “mãos beijadas” qualquer mínimo direito. Afinal, verdade seja dita: Zeca tem razão quando diz que Lula não concorda com a luta combativa de indígenas e camponeses. Pois para se manter no seu governo de conciliação deverá manter-se firmemente ao lado dos latifundiários, sem chocar minimamente com seus interesses. Exemplo disso é o próprio Mato Grosso do Sul, onde o PT apoiou Eduardo Riedel ao governo (chamado pelos indígenas de “Eduardo Hitler”). Será que não sabiam do histórico deste facínora no famigerado “Leilão da Resistência” em 2013, que armou os latifundiários contra as retomadas indígenas e criminalizou os companheiros do Conselho Indigenista Missionário?

Agora, como parte da cruzada anti-retomada encabeçada por Riedel/Zeca, lideranças do Conselho Aty Guasu são criminalizadas, perseguidas de diversas maneiras, inclusive sendo intimadas a depor na Polícia Federal. Também são alvo de investidas os apoiadores desta justa luta. Nós do Comitê de Apoio a Luta dos Povos Indígenas condenamos toda e qualquer tentativa de criminalização da luta popular, em particular a grandiosa resistência dos Guarani-Kaiowá contra o roubo histórico de suas terras tradicionais! Lutar não é crime!

E como parte que são do velho Estado burocrático-latifundiário, condenamos o oportunismo eleitoreiro, que busca corporativizar esta luta (chegaram tarde!). Somente a persistência no caminho das retomadas como luta legítima pela Autodemarcação dos territórios garantirá o respeito aos direitos originários dos povos indígenas. É isso que a história prova! O que fará o atual governo federal? Acatará a demanda dos indígenas e camponeses, correndo risco de perder a relação com seus “companheiros e amigos” do agronegócio? O Sr. Zeca do PT já nos fez o favor de deixar claro que não. A energia represada de séculos do bravo povo Guarani-Kaiowá não será contida por ninguém!

Avançar as Retomadas! Viva a Autodemarcação das terras indígenas!

Todo apoio ao Conselho Aty Guasu e ao tekoha Laranjeira Nhanderu!

Comitê de Apoio a Luta dos Povos Indígenas

 

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