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Quase 20 anos depois, fazendeiro “juiz” é condenado por mandar matar sindicalista

José Dutra da Costa foi morto por denunciar desmatamento,
grilagem e trabalho escravo; advogado do caso falou sobre a condenação
do latifundiário com alcunha de “juiz” no Pará

Após quase 20 anos, o fazendeiro Décio José Barroso Nunes foi condenado pelo júri do Fórum Criminal de Belém (PA)
a 12 anos de prisão. Conhecido como Delsão, no dia 14 de agosto ele
foi considerado o mandante do assassinato do sindicalista José Dutra da
Costa, o Dezinho, morto por pistoleiros em 21 de novembro de 2000, em
Rondon do Pará. Condenado em primeira instância em regime fechado, o
fazendeiro pode recorrer em liberdade.

Delsão já havia sido condenado a mesma pena em abril de 2014, mas à
época o Tribunal de Justiça do Pará (TJ-PA) anulou o júri por considerar
que o fazendeiro teve o direito de defesa prejudicado. Cinco anos
depois, em abril deste ano, um novo julgamento foi marcado, mas suspenso
após abandono do promotor.

Em nota,
organizações de direitos humanos, como Justiça Global e Terra de
Direitos, afirmaram que a condenação neste mês de agosto “é uma vitória
contra a violência e a impunidade no campo”. Então presidente do
Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rondon do Pará, Dezinho havia
denunciado Décio José Barroso Nunes por desmatamento, grilagem de terras
e por utilização de trabalho análogo à escravidão e passou a receber
ameaças constantes. O sindicalista chegou a escapar de duas tentativas
de homicídio antes de ser assassinado com três tiros na porta de casa. A
viúva do sindicalista, Maria José Dias da Costa, assumiu a presidência
do sindicato após o assassinato do marido e desde então vive sob escolta
policial.

Para explicar o caso, a Agência Pública entrevistou o advogado Marco
Apolo Leão, da Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos (SDDH),
que atuou como acusação no processo contra o fazendeiro. Ele afirma que
a morosidade da resolução do crime “retroalimenta a violência no
estado”. “A gente espera que não tenha mais nenhuma reviravolta. Mas
aqui no Pará, com esses tribunais que a gente tem, é capaz de tudo”,
diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

José Dutra da Costa, o Dezinho, morto por pistoleiros em Rondon do Pará. Foto: Jornal O Liberal

O que motivou o crime?

O que motivou o crime foram três situações básicas. A primeira, que o
fazendeiro Décio Barroso tinha terras griladas e o sindicato rural de
Rondon do Pará estava defendendo que essas terras fossem usadas para a
reforma agrária. A segunda questão é que o sindicato havia denunciado a
existência de trabalho escravo nessas terras. E o terceiro motivo é
que o Dezinho também recebeu denúncias de homicídio que haviam sido
praticados pelo fazendeiro, e ele estava se preparando para fazer essas
denúncias. Fora o fato de que o Dezinho já tinha sido ameaçado pelo
fazendeiro e já havia denunciado a ameaça para o secretário de Segurança
Pública.

Qual é o conflito na região?

Na região tinha uma situação muito forte de grilagem e trabalho
escravo. A disputa pela terra era muito grande, e o fato de ser terra
grilada possibilitava que os camponeses pudessem disputar essa terra.
Mas existia um consórcio de fazendeiros que era muito parecido com o que
aconteceu com a Dorothy Stang. Só que lá eles chamavam de “cabala”,
não era consórcio. E o chefe dessa “cabala” era esse fazendeiro que
tinha a alcunha de “juiz”. Eles, na verdade, contratavam pistolagem
para cometer crime contra trabalhadores rurais. A região, na época e
até hoje, é conhecida por ter muita violência.

Atualmente como está o conflito na região?

O fato de ter tido uma grande reação contra o assassinato do Dezinho,
e essa situação ter sido, inclusive, denunciada na OEA, a gente
acredita que ajudou um pouco a amenizar as ameaças contra as principais
lideranças. Mas de vez em quando existem casos de homicídios lá na
região. A própria viúva de Dezinho vive sob escolta diária até hoje por
conta das ameaças.

O que aconteceu nos julgamentos?

O primeiro julgamento [que ocorreu em 2014] foi anulado porque o
Tribunal de Justiça do Estado do Pará entendeu que não tinha motivo para
a condenação dele. É uma decisão inexplicável. Os únicos que podem te
explicar por que o primeiro julgamento foi anulado são os
desembargadores.

Quando foi anulado?

Foi em 2016. Mas a gente não viu e não vê motivos para esse
julgamento ter sido anulado, porque as mesmas pessoas que foram depor
nesse julgamento foram depor agora. E agora, inclusive, ele foi
condenado com mais folga ainda. O novo julgamento [em 2018] foi adiado
porque o juiz do caso, na época o Raimundo Flexa, não permitiu que o
Ministério Público exibisse o depoimento de testemunhas no plenário, o
que fez o promotor entender que o juiz agiu errado e se retirar do
julgamento.

E o julgamento de agora, de 14 de agosto?

Teve esse novo julgamento agora, e a família [do Dezinho] resolveu
ir, já que o Ministério Público deu uma demonstração de estar
interessado, de boa-fé no caso. Porque é muito difícil, a família se
expõe muito. Não foi apenas um acusado, teve o julgamento do pistoleiro
Wellington, teve o julgamento dos intermediários do crime, que foram
absolvidos. No caso do Delsão, em Belém, o pessoal se expõe muito. É
um cara perigoso. Essa é a terceira sessão de julgamento que foi
marcada para julgá-lo.

Como foram os julgamentos dos pistoleiros e dos intermediários do crime?

O pistoleiro foi condenado, mas ele fugiu da prisão depois, o
Wellington. O intermediário, Igoismar, fugiu, a gente não sabe do
paradeiro. A gente acredita que esses caras estão mortos, que teve
queima de arquivo. Até porque teve uma testemunha ocular do crime,
chamado Magno, que foi assassinada. É o cara que dava depoimento sobre
uma caminhonete muito parecida com a do Delsão que foi julgado agora e
condenado, e que a gente espera que não tenha mais nenhuma reviravolta.
Mas aqui no Pará, com esses tribunais que a gente tem, é capaz de tudo.

Momento em que a justiça paraense profere a sentença do fazendeiro Décio José Barroso Nunes

Como esse último julgamento se encaminhou?

Tem uma testemunha que fala como foi a preparação da morte do
Dezinho. Essa testemunha, que já esteve em proteção no ProVida, foi
trazida pelo MP, então é uma testemunha fundamental, tanto no outro
julgamento quanto nesse de agora. E ela relata como foram os
preparativos para matar o Dezinho. O Dezinho, na verdade, foi vítima de
duas tentativas de homicídio que falharam, aí o pistoleiro que falhou
foi assassinado, que é irmão dessa testemunha; e na terceira tentativa
deu certo, os caras conseguiram matar o Dezinho. Era um esquema muito
bem organizado, inclusive com omissão de autoridade do sistema de
segurança pública, com a situação de uma rede de pistolagem, com
colaboração de outros fazendeiros.

Foi um julgamento em primeira instância. O fazendeiro recorre em liberdade?

Sim, vai recorrer em liberdade. O que é estranho também. O sistema
jurídico brasileiro fala o seguinte: quando existem ameaças a
testemunhas, as pessoas têm que ser presas. Mas nesse caso, também,
inexplicavelmente, não foi. Mas o MP recorreu, e a gente vai aguardar o
desfecho.

O processo se arrasta há quase 20 anos. Qual o efeito dessa morosidade?

É muito ruim porque de certa forma retroalimenta a violência aqui no
estado. Desde 1980, são quase mil assassinatos no campo. E esse
julgamento só acontece depois de muita pressão da família. A gente
acredita que o Estado brasileiro, a Justiça, tem uma dívida muito grande
com esse tipo de situação, e de certa forma é também responsável pela
violência, já que demora a julgar e em muitos casos [o assassino] fica
impune.

Para saber mais do conflito

O Brasil chegou a ser denunciado à Organização dos Estados Americanos
(OEA) como corresponsável pelo crime de Dezinho. Em 2010, o Estado
brasileiro assinou um acordo perante o órgão internacional, reconhecendo
sua responsabilidade, e se comprometeu a implantar políticas públicas
relacionadas à luta pela reforma agrária.

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o mandante do crime
possui cerca de 130 mil hectares de terra em Rondon do Pará, parte delas
em terras públicas.

Além disso, o latifundiário responde a mais de 30 embargos do Ibama
por crimes ambientais e cinco centenas de processos na Justiça do
Trabalho.

Durante a investigação da morte de Dezinho, foram abertos outros
quatro inquéritos para apurar a participação de Delsão na morte de
trabalhadores de suas serrarias, mas nenhuma das investigações foi
concluída. Além do fazendeiro, condenado como mandante do assassinato
na última semana, outras quatro pessoas foram julgadas pelo crime. O
pistoleiro que assassinou o líder sindical Dezinho foi condenado a 27
anos de prisão pelo crime em 2006, mas no ano seguinte fugiu após saída
temporária e segue foragido. O fazendeiro Lourival de Souza Costa e o
capataz Domício Souza Neto foram julgados e absolvidos das acusações de
envolvimento em 2013. Apontados como intermediários, os irmãos Igoismar
Mariano e Rogério Dias tiveram a prisão decretada à época, mas nunca
foram encontrados.

A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal.

Por: Rafael Oliveira
Fonte: A Pública