Camponeses que tomaram a última faixa de terras em fazenda de Chupinguaia celebram um mês do Acampamento Manoel Ribeiro

Camponeses celebram 1 mês de ocupação de uma das últimas terras onde ocorreu a Heróica Resistència Camponesa de Corumbiara

Camponeses que ocuparam a última faixa de terras da Fazenda Santa Elina inteiraram domingo (20) o primeiro mês de vida do Acampamento Manoel Ribeiro, em Chupinguaia, a 650 quilômetros de Porto Velho.

Em assembleia popular, a Liga dos Camponeses Pobres (LCP) de Rondônia e Amazônia Ocidental celebrou “a conquista da terra”. Do encontro participaram camponeses vindos de outros acampamentos, professores, estudantes e dirigentes acadêmicos da Universidade Federal de Rondônia (Unir).

No corte das terras feito por eles próprios também nessa extensão do latifúndio da família Duarte denominada Fazenda Nossa Senhora Aparecida, cada família teve direito a um lote de cinco hectares.

No período das primeiras ocupações, ainda nos anos 1990, o latifúndio da família Duarte media 18 mil hectares.

“Todas as terras da antiga Fazenda Santa Elina agora são do povo! Viva a Heroica Resistência Camponesa de Corumbiara!”, publica o jornal Resistência Camponesa. “Na medida em que o número de acampados, cresce também a solidariedade dos camponeses moradores das Áreas Revolucionárias vizinhas, que têm doado parte de suas produções para ajudar as famílias em luta pela terra”, acrescenta.

Em março deste ano, no começo da pandemia, o presidente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados, Helder Salomão, solicitava ao então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro José Dias Toffoli, e do Conselho Nacional de Justiça, a suspensão de mandados coletivos de reintegração de posse e o encaminhamento de medidas de proteção aos direitos fundamentais das populações mais vulneráveis.

A Comissão alertava para o a necessidade de conter o avanço do coronavirus entre os mais pobres. “As reintegrações atingem justamente populações vulneráveis que vivem em locais com excessivo adensamento e coabitação. Os processos de remoção geralmente conduzem as famílias a situações de maior precariedade e exposição ao vírus e, em casos extremos, a morarem na rua, o que tornaria impossível o tratamento adequado e o isolamento necessário”, justificava a Comissão.

Da mesma forma, a Rede Nacional de Conselhos de Direitos Humanos expedia a Recomendação Conjunta n. 1/2020, na qual também pedia ao Judiciário a suspensão por tempo indeterminado do cumprimento de mandados de reintegração de posse, despejos e remoções determinadas em processos judiciais. Medida semelhante fora adotada nos Estados Unidos e na França. A iniciativa desses países atendeu orientações dos órgãos internacionais e especialistas de saúde sobre o tema.

Apoio à indígenas roubados

As falas no domingo (20) não se limitaram à conquista da terra, abrangendo ainda o apoio aos indígenas Uru-eu-au-au e a outros povos vítimas de roubo de madeira, de assassinatos e da Covid-19. Professores e estudantes exaltaram a preservação do bioma pelo índio, fator de equilíbrio ambiental na Amazônia.

Os participantes gritaram palavras de ordem e entoaram hinos, entre os quais, “Conquistar a terra”. Trecho:

Quem gosta de nós somos nós
E aqueles que vêm nos ajudar
Por isso confia em quem luta
A História não falha
Nós vamos ganhar

Já chega de tanto sofrer
Já somos uns 30 milhões
O povo sem terra e sem pão
O jeito é lutar por nosso chão
A História não falha
Nós vamos ganhar

O DCE defendeu o direito à educação básica, condenou o fim de diversas escolas agrícolas e denunciou a circulação de ônibus imundos e lotados, para o transporte escolar dos estudantes do campo e da cidade.

Na tarde de seis de setembro, um domingo, um helicóptero do Núcleo de Operações Aéreas (NOA) da Secretaria Estadual de Segurança vindo do rumo de Vilhena fez vôos rasantes sobre o acampamento. Alguns camponeses dispararam fogos de artifício para alertar acampados e apoiadores.

Em 15 de setembro a polícia parou um ônibus que partiu fretado do município de Seringueiras levando famílias de camponeses até a entrada do Acampamento Manoel Ribeiro. Quatro viaturas o escoltaram de volta à cidade.

Conforme relataram os passageiros na ocasião, a primeira interceptação contra o ônibus ocorreu no posto da Polícia Rodoviária federal, quando o veículo atravessava o município de São Miguel do Guaporé, após percorrer quase 40 quilômetros.

Para a LCP, a manobra policial “visou contar o rápido crescimento do acampamento, que ganha mais força a cada dia, e impedir a chegada de mais famílias às terras tomadas da antiga Fazenda Santa Elina”.

“Antes da pandemia, estudantes e a população em geral passavam horas esperando pelo ônibus que não passava; são mesmo precárias as condições do transporte público na própria Capital [mais de 500 mil habitantes], no campo, a mesma coisa; o povo de Porto Velho não dispõe de transporte público decente, barato e de qualidade”, disse um dos membros do DCE.

“Enquanto o velho Estado põe suas Forças Armadas a criminalizar camponeses pobres e outros pobres; a GLO [siga do governo para Garantia da Lei e da Ordem] na verdade despreza a todos, faz vistas grossas ao roubo de madeira, e nem sequer reconhece que a reforma agrária fracassou”, sintetizou outro membro do DCE.

Apoio Universitário

Às 11h, crianças, mulheres e idosos foram os primeiros a serem chamados para o almoço sob barracas de madeira cobertas por lonas plásticas.

Distribuídos em oito pontos denominados cantinas, os responsáveis pela alimentação cozinharam arroz, feijão macarrão e pedaços de frango em panelas e caldeirões que fervilharam em fogões a lenha.

Solidários, na semana passada o Diretório Central dos Estudantes da Unir e representantes do Centro Brasileiro de Solidariedade aos Povos (Cebraspo) se cotizaram para ajudar na compra de gêneros. Emocionados, alguns dos dirigentes discursaram no barracão construído de pau a pique e cujo corredor em frente chama-se Avenida Nelinho*.

Se no passado, somente camponeses usavam máscaras, agora elas são muito comuns entre eles e os visitantes, que também as utilizaram durante a celebração dos 25 anos da tomada da fazenda onde, na parte situada no município de Corumbiara, onde ocorreu a chacina da madrugada de 9 de agosto de 1995.

Um dos barracos abriga o Comitê Sanitário, no qual os responsáveis armazenam e oferecem máscaras e álcool gel.

Não há um só caso de Covid-19 entre eles. O tempo todo, crianças e adultos se valem desse recurso para afastar o perigo do contágio do novo coronavírus, que ao redor faz vítimas desde o início da pandemia: Corumbiara teve até aquele domingo teve 37 casos confirmados e três óbitos; Chupinguaia, 663 e cinco óbitos.

O Comitê de Mulheres organizou a lavação de roupas, toalhas e outras peças. A água encanada sobe até uma caixa com torneiras cuidadosamente mantidas. Cada camponês retira o balde d’água necessário para cozinhar ou se banhar, não se vê desperdício.

O ânimo dos acampados não se resume apenas à expectativa de plantar e colher para subsistência e vendas locais, a exemplo dos Acampamentos Canaã, Raio de Sol, Renato Nathan 1 e 2, e Zé Bentão, noutros municípios, ali têm surgido talentos na moda de viola, crianças que declamam poesia e demais artistas.

O conhecido Neguinho Ferramenta é um desses talentos: na simplicidade, ele se orgulha ao apresentar sua produção do mês: bainhas de faca, colheres de pau, porta-copos, cinzeiros, chaveiros, pratos e pilão, tudo em madeira. A mais recente sensação é a caixa para abelhas jataí, que já saem da mata para produzir mel em nova morada.

Quando Neguinho for assentado, espera ir às cidades da região para vender seus produtos. “Olha aqui este”, não se cansava de dizer mostrando cada peça confeccionada. E almoçou num dos pratos de madeira que fez.

Algumas vezes cercada pela polícia, que ultimamente vigiou a área do alto, com helicóptero e droner, a LCP vê nesses aspectos a possibilidade de conscientização popular para sua Revolução Agrária.

De uma década para cá, diversas vezes, militantes e dirigentes acamparam em Porto Velho, Jaru, Ariquemes, Ouro Preto do Oeste, Corumbiara e até em Brasília, para exigir direitos das famílias vítimas do massacre de 1995, e de outras que chegaram depois, mas até hoje participam da luta.

Há três governos, o Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina (Codevise) desistiram de esperar por indenizações, se cansaram de procurar o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e, por conta própria, cortaram os lotes na forma como estabeleceu o seu Comitê de Defesa Agrária.

Documento assinado pela LCP, Codevise e Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Corumbiara assinala: “A resistência em Corumbiara foi um divisor de águas na luta pela terra no Brasil, ao romper com toda a prática oportunista de negociações com órgãos do governo e traições aos camponeses”.

“A heroica resistência foi a mãe do movimento camponês de novo tipo, dando origem à Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia e Amazônia Ocidental, posteriormente se unindo com outras lutas e se espalhando por todo o País”, prossegue.

“Tentaram afogar em sangue a luta, mas não conseguiram! Nos dias seguintes à batalha, quando as famílias iam se reencontrando diziam: vamos retomar Santa Elina! A coragem superou o medo, porque tinham a certeza de que sua luta seria justa, que precisavam de terra para trabalhar. Ao contrário do que o latifúndio esperava, a repressão sangrenta gerou enorme solidariedade e fez explodir o ódio das massas, levantando uma onda de novas tomadas de terra por todo o País”.

* Nelinho era o apelido do ex-vereador Manoel Ribeiro, assassinado aos 30 anos de idade numa emboscada, com três tiros, na frente de sua namorada Valdirene, em 16 de dezembro de 1995 por apoiar ativamente a tomada da Fazenda Santa Elina. Morreu sem saber que seria pai de uma menina. Valdirene estava grávida, mas ainda não sabia. Era mineiro de Ferruginha, município de Conselheiro Pena. Sua família mudou-se para o Paraná, onde ele começou a trabalhar cedo na roça, em seguida numa farmácia, com apenas 13 anos. Mudou-se com os pais para Colorado do Oeste, trabalhou mais dois anos em farmácia e foi bancário no Bradesco. Colaborou na formação do sindicato da categoria e se tornou uma das mais expressivas lideranças do sul do estado. Também aliou-se ao Movimento dos Professores em 1987. Em 1992, com Corumbiara emancipada, elegeu-se vereador e conseguiu fazer política diferente, incluindo em sua trajetória e no mandato a defesa dos camponeses. Em 1993 fundou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, que formou mais de 60 lideranças dali e de outras áreas: Adriana, Vitória da União e Verde Seringal. No começo, o Acampamento de Santa Elina chegou a ter mais de 600 famílias e aproximadamente 2 mil pessoas.

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Escrito por Epaminondas Henk e Montezuma Cruz / Publicado pelo sítio Gente de Opinião em 21 de Setembro de 2020

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