Viva os 15 anos da heroica resistência camponesa de Corumbiara

A luta pela terra no sul de Rondônia

A colonização de Rondônia recebeu grande impulso no final da década de 1970, com sucessivas ondas de migrantes atraídos por promessas de terras férteis do Programa de Integração Nacional do gerenciamento militar. Dezenas de milhares de camponeses, vindos principalmente do sul e sudeste do país, se estabeleceram primeiramente no sul do estado, áreas com as melhores terras que ficaram concentradas nas mãos dos grandes latifundiários criadores de gado.

A partir de 1985 camponeses pobres começaram a se organizar e conquistaram terras que originaram as vilas Alto Guarajús, Verde Seringal e Rondolândia e mais tarde o povoado de Corumbiara.

Todas estas conquistas foram marcadas por enfrentamentos em que o latifúndio covardemente usou a violência de bandos armados e das polícias do estado para impedir as tomadas de terra. Foram as agressões, assassinatos de camponeses pobres e massacres que obrigaram o movimento camponês a avançar cada vez mais em sua organização e autodefesa.

A tomada da fazenda Santa Elina

Algumas lideranças que haviam rompido com a direção vacilante do MST se juntaram para organizar a tomada de um dos maiores latifúndios da região.

A fazenda Santa Elina, com 18 mil hectares foi ocupada no dia 15 de julho de 1995 por mais de 600 famílias.  O acampamento ganhou o apoio de pequenos e médios camponeses e dos comerciantes locais. Neste mesmo ano ocorreram 440 conflitos por terra no Brasil, sendo 15 em Rondônia.

Como sempre, a Justiça foi muito rápida em atender aos latifundiários. No dia 19 de julho já havia sido expedida a liminar de manutenção de posse.

As investidas dos bandos armados de pistoleiros haviam sido todas derrotadas pela resistência camponesa e a situação começou a preocupar o governo do estado e os latifundiários. A imprensa reacionária denunciava estes feitos e exigia punição aos líderes e intervenção de tropas especiais. A Sociedade Rural, braço da União Democrática Ruralista (UDR), pressionava o governador exigindo o cumprimento da liminar e exigindo que o comandante da polícia fosse preso por omissão porque protelava o despejo.

Na época, o então governador Valdir Raupp (PMDB) – latifundiário com quem o PT se aliou desde as eleições estaduais em 1994 – foi o principal responsável por uma das páginas mais sangrentas da luta pela terra no Brasil, autorizando a ação genocida da Polícia Militar para exterminar a organização dos camponeses. Para fazer cumprir a liminar de manutenção de posse, a polícia teve o financiamento dos latifundiários Antenor Duarte do Valle e Hélio Pereira de Morais (proprietário da fazenda).

No dia 8 de agosto, chegou ao acampamento o major PM Ventura acompanhado da imprensa reacionária. Houve uma conversa entre o comandante e uma comissão dos camponeses onde o comandante – já sabedor da ação que estava sendo preparada – garantiu que não haveria represálias por parte dos policiais e que os camponeses poderiam sair no outro dia pela manhã. Depois desta conversa os camponeses fizeram uma assembleia onde decidiram que só sairiam com a garantia de um pedaço de terra. O que eles não sabiam é que a imprensa havia filmado o acampamento para fornecer as imagens para o comando da PM finalizar os preparativos do ataque.

Na madrugada do dia 9 de agosto por volta das 3 horas, pistoleiros armados recrutados nas fazendas da região, usando fardamento da PM e rostos cobertos, iniciaram os ataques ao acampamento. Após horas de tiroteio, os camponeses não tinham mais munições para suas espingardas, quando entrou em cena o COE (Comando de Operações Especiais) sob o comando dos comandantes José Hélio Cysneiros Pachá e Mauro Ronaldo Flores. Eles utilizaram holofotes, bombas de gás lacrimogêneo e todo tipo de armamento pesado. Mulheres foram usadas como escudo humano pelos policiais e pelos pistoleiros. Camponeses foram atacados com golpes de porrete nas cabeças, cortes com motosserra, chutes no rosto, nas costas e abdômen, espancamentos generalizados e execuções sumárias. Muitos foram obrigados a comer o próprio sangue misturado a terra e até mesmo pedaços de cérebro dos que tiveram suas cabeças esmagadas. Outros foram obrigados a carregar os corpos para um caminhão.

Torturas e execuções sumárias

Os camponeses resistiram heroicamente com paus, foices e espingardas de caça, o que garantiu que o massacre não fosse maior. Mas ao amanhecer do dia 9 de agosto, foram rendidos. A PM montou um verdadeiro campo de concentração nas proximidades do acampamento para onde os camponeses foram levados e mantidos presos. Durante todo dia 9, sob o sol escaldante, mais de 400 camponeses foram submetidos a torturas, insultos, humilhação e todo tipo de abusos na frente de suas mulheres e filhos.

As torturas e maus tratos seguiram durante o transporte para a cidade de Colorado do Oeste, há cerca de 70 km do acampamento. Cerca de setenta camponeses foram encaminhados à delegacia de polícia, onde foram novamente espancados e torturados, e centenas ficaram confinados no ginásio de esportes da cidade.

O jovem camponês Sérgio Rodrigues Gomes, com ferimentos de bala e de espancamentos foi retirado em uma caminhonete da fazenda e seu corpo foi encontrado 14 dias depois às margens do rio Tanarú no município de Chupinguaia. Seu corpo foi dilacerado em vários dias de torturas e suplícios e seu rosto desfigurado tinha a marca de três tiros.

Oficialmente, o Estado anunciou como resultado de sua ação genocida 16 mortes (dois policiais e o restante camponeses, entre os quais a pequena Vanessa de 7 anos, assassinada com tiro pelas costas). No entanto, em razão da chacina e toda a covarde selvageria policial vários outros camponeses faleceram posteriormente, pelo menos 7 desapareceram, mais de 200 camponeses ficaram com graves sequelas físicas e psicológicas e muitos feridos continuam até hoje com balas encravadas no corpo.

A heroica resistência dos camponeses

A resistência em Santa Elina teve grande repercussão no país e no exterior, o que obrigou a gerência vende pátria de FHC/ACM (PSDB/PFL) designar lotes para as 600 famílias. O INCRA encenou a desapropriação da Fazenda Santa Elina e logo, contando com o beneplácito dos dirigentes do PT e da CUT que intermediaram negociações com o Estado, desviou para outras terras. Após prolongadas negociações, os camponeses foram assentados em três áreas diferentes: Rio Crespo (próximo de Ariquemes), Vanessa (região de Corumbiara) e Santa Catarina (hoje Palmares, em Theobroma) onde se concentrou a maioria das famílias.

O massacre foi uma ação planejada militarmente com o objetivo de espalhar terror entre as famílias de camponeses e assim paralisar as tomadas de terra do latifúndio na região. No entanto, ao contrário do que se esperava, a repressão sangrenta gerou enorme solidariedade e fez explodir o ódio das massas, levantando uma onda de novas tomadas de terra por todo o país.

A resistência camponesa em Corumbiara foi o divisor de águas na luta pela terra no Brasil após o gerenciamento militar, ao romper com toda a prática oportunista de negociações com órgãos do governo e traições aos camponeses. A heroica resistência camponesa foi a mãe do movimento camponês de novo tipo no país, dando origem à Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia e Amazônia Ocidental, posteriormente se unindo com outras lutas e se espalhando por todo o país.

O Comitê de Defesa das Vítimas

No dia 06 de agosto de 2001 foi fundado em Corumbiara o CODEVISE – Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina. Participaram vítimas do massacre residentes em Palmares e Corumbiara, professores, advogados, estudantes e apoiadores, com o objetivo de organizar a luta em torno de três bandeiras principais: 1) Tratamento médico adequado para as vítimas; 2) Punição dos responsáveis pelo massacre e 3) Luta pela indenização de todos vitimados.

Na questão jurídica, os processos contra o Estado não resultaram em punições aos responsáveis pelo massacre, pelo contrário, os comandantes da PM foram promovidos e o latifundiário Antenor Duarte sequer foi julgado. Ao passo que três lideranças dos camponeses foram condenados como responsáveis pelo conflito. Em 2008 o governo brasileiro foi condenado como responsável pelo massacre pela Corte Interamericana de Justiça da OEA – Organização dos Estados Americanos que indicou a indenização das vítimas. A Corte entendeu que a ação violenta da PM foi uma operação de guerra do Estado contra os camponeses.

Na questão do tratamento médico, dezenas de camponeses receberam apoio do Socorro Popular (Organização popular para apoio e solidariedade do povo em luta) para realizar seus tratamentos em outros estados e alguns em Porto Velho, graças ao trabalho de solidariedade de médicos e apoiadores.

A luta pela indenização e o oportunismo do PT

Em agosto de 2007, após um longo trabalho de denúncia de sua situação em jornais, TV e rádios sobre o descaso do governo federal, as famílias decidiram ir para Brasília cobrar do presidente Luís Inácio a promessa que ele fez aos camponeses na época do massacre. Ficaram acampados por 23 dias nos gramados do palácio do Planalto e Lula se recusou a recebê-los.

Na Comissão Especial de Direitos Humanos, o ministro de Direitos Humanos Paulo Vanucci e o secretário do gabinete presidencial Gilberto Carvalho em reuniões com as vítimas prometeram que em 2 meses as reivindicações seriam encaminhadas. Mas numa reunião em Ji-Paraná com 440 pessoas o ministro Vanucci passou por cima de todas as promessas feitas ao Codevise em Brasília de que o governo federal resolveria o problema. Ele saiu de fininho, sem sequer deixar ninguém falar. E passou a responsabilidade para o governo de Rondônia.

Sem que houvesse discussão com as vítimas reconheceu a Fetagro (entidade governista) como responsável pelo levantamento de informações, triagem e controle de R$ 94 mil reais destinados as vítimas de Corumbiara. Mesmo após ser criticada por não consultar o Codevise e a LCP sobre o projeto encaminhado ao governo federal, a direção da Fetagro não aceitou as modificações propostas. Diante disso, o Codevise e a LCP decidiram não participar desta farsa e desenvolver a luta pela indenização de forma independente do oportunismo eleitoreiro.

A luta pelo corte das terras

Cansados de esperar pelas promessas dos políticos, os camponeses iniciaram a mobilização para retomarem as terras da fazenda Santa Elina. No dia 11 de maio de 2008, cerca de 250 pessoas entraram na área. Novamente, 8 dias após a entrada a justiça já havia dado reintegração de posse, mesmo com os laudos apontando ser terra improdutiva e possuir uma dívida de milhões por multas de desmatamento.

O Incra fizeram de tudo para impedir que as famílias permanecessem nas terras. Utilizaram “lideranças” escolados em extorquir e enganar trabalhadores para desmobilizar o acampamento prometendo dinheiro, lona e cestas básicas. Diante de todas as denúncias feitas a época e da disposição de luta dos acampados foram expulsos do acampamento.

Após meses de provocações e ataques de pistoleiros ao acampamento, em setembro de 2008 as famílias foram despejadas das terras, mas mantiveram-se acampadas no assentamento Adriana. Os bandos armados do latifúndio continuaram os ataques, inclusive a alguns moradores deste assentamento por apoiarem a tomada de terra.

Santa Elina é do povo

No início de 2010 o Incra propôs ação judicial para desapropriação da fazenda Santa Elina, segundo esta ação apenas uma parte da fazenda seria cortada. Para tentar impedir tomadas de terra na área realizaram várias ameaças em notas publicadas na internet e através de discussões com lideranças camponesas dizendo que qualquer tentativa seria reprimida pela Polícia Federal e que o Incra não reconheceria nenhum cadastro de famílias realizado por movimentos sociais, sindicatos ou associações.

Com estas declarações o Incra criminaliza a luta pela terra e responsabiliza os camponeses pobres por qualquer conflito que venha a ocorrer na área, tal como fizeram antes do massacre, em 1995. Fazendo coro com o Incra, a CPT lançou uma nota no último dia 05 atacando a retomada da fazenda e negando qualquer apoio.

O principal interesse do Incra e da Federação dos Trabalhadores Rurais do estado (controlada pelo deputado Anselmo de Jesus – PT) é usar a luta de quase 15 anos das vítimas de Santa Elina para angariar votos em seus anseios eleitoreiros. Há ainda denúncias de que antigos funcionários do Incra de Colorado do Oeste estariam vendendo o direito a terras na fazenda.

No mês de abril de 2010 o Codevise apoiado pela LCP iniciou a mobilização das vítimas de Corumbiara e de famílias de camponeses sem terra para retomar a fazenda Santa Elina. Após quase dois meses de mobilização as famílias entraram na área no dia 25 de julho as vésperas de completar 15 anos da histórica batalha de Corumbiara.

Mais que nunca lutar pelo corte imediato da fazenda Santa Elina e sua entrega a todas as vítimas e as famílias de camponeses pobres sem terra acampadas na área é a principal tarefa do movimento camponês combativo, de todos trabalhadores, verdadeiros democratas, intelectuais honestos e demais apoiadores sinceros.

Abaixo o oportunismo eleitoreiro!

O povo quer terra, não repressão!

Pelo corte imediato da fazenda Santa Elina!

Honra e glória aos mártires de Corumbiara!

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