Cansados de passar fome, 250 indígenas Kaiowá retomam parte do território ancestral

A fome e a situação de extrema vulnerabilidade “vivida” por mais de 50 famílias Kaiowá ao longo das últimas décadas em um acampamento localizado próximo a cidade de Coronel Sapucaia no Mato Grosso do Sul levaram na tarde desta segunda feira, dia 22, cerca de 250 indígenas a retomarem uma pequena parte de seu território tradicional, conhecido como Kurussu Ambá. As famílias ocuparam porções de terra para poderem iniciar o plantio de seus alimentos e desta forma cessar a fome que há muito tem lhes açoitado, chegando inclusive, em inúmeras vezes, a tirar a vida de suas crianças.

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Segundo relato dos indígenas, na tarde de segunda feira, um arrendatário foi até o limite da área que estabelece divisa entre a fazenda Auxiliadora e o local onde os Kaiowá estão acampados, enclausurados desde 2009 em uma diminuta área de reserva legal existente junto à fazenda. Nesta pequena faixa de mato, as mais de 50 famílias Kaiowa esperaram até a presente data pacientemente pela demarcação de seu Tekoha (território tradicional). O arrendatário então anunciou que novamente toda à área existente seria usada para o plantio por parte da fazendeira, não restando aos indígenas nenhum hectare de sua própria terra.

As famílias indígenas, de maneira absolutamente pacífica, impediram as pretensões do arrendatário e informaram que retomariam imediatamente a parte de Kurussu Ambá necessária para garantir minimamente a sobrevivência do povo Kaiowá. A partir de então os Kaiowa bloquearam as estradas que dão acesso à fazenda em protesto a situação de genocídio a que estão submetidos.  Os próprios indígenas fizeram contato com representantes da Força Nacional de Segurança que integram a Operação Guarani com intensão de garantir a segurança da comunidade indígena e evitar conflito com possíveis (prováveis) pistoleiros.

Na manhã de ontem, dia 23, representantes da Funai e integrantes da Operação Guarani se deslocaram até o local dialogando primeiramente com os indígenas e posteriormente com o arrendatário, que foi encontrado nas imediações do acampamento. Os indígenas relataram a finalidade de suas ações e deixaram claro que apenas buscavam espaço para manter sua subsistência. Mediante a FUNAI e os membros da Operação Guarani ficou pactuado com ambas as partes que seria estabelecido um limite para que os indígenas pudessem plantar e que próximo a esta área não fosse utilizado veneno por parte do arrendatário. Esse acordo deveria ser mantido até que a FUNAI conseguisse uma posição oficial da esfera judicial.

Porém, no meio da tarde, longe da presença dos órgãos, o arrendatário voltou a adentrar o limite estabelecido e com um trator passou a pulverizar agrotóxico que chegou até a moradia dos indígenas. Frente a esta situação os Kaiowá expulsaram o arrendatário das imediações do acampamento, voltaram a protestar bloqueando as estradas que dão acesso a fazenda e determinaram o prazo de um dia para que o arrendatário e sua família deixem a área, garantindo que seus bens permanecerão intocados até que possam ser devidamente retirados.

Os Kaiowá anunciam que desta vez não recuarão de sua decisão de retomar parte de sua área ancestral e que irão esperar a continuidade do processo demarcatório em condições dignas de vida, em posse daquilo que lhes pertence. Após estar estabelecida a retomada, na noite de ontem, um susto. Uma caminhonete estacionou na estrada, em frente ao acampamento dos indígenas e lá permaneceu. Os Kaiowá acreditaram em um primeiro momento que se tratava de um veículo de pistoleiros que realizavam uma vigília. Porem passando bastante tempo e constatando que não havia ninguém dentro do carro, os indígenas se aproximaram e o que encontraram foi carregamento pesado de drogas abandonado na estrada. Os indígenas temem que possa ser uma estratégia de criminalização a sua comunidade e voltaram a contatar novamente membros da Operação Guarani.

Há mais de dois anos atrás, os meios de comunicação da cidade de Amambai e da região têm registrado os estragos que a manutenção da monocultura de soja tem causado a estas famílias indígenas. Alijadas de sua terra, sofrem longos períodos de fome aguda, onde muitas vezes se alimentam apenas de farinha de mandioca e agua. Além disso, são sistematicamente fatigados por doenças causadas tanto pela desnutrição quanto pela ingestão de agua contaminada com fortes dosagens de agrotóxicos. O Cimi vem a quase uma década denunciando tal situação que seria facilmente evitada caso os indígenas ocupassem sua terra tradicional e tivessem acesso à água, remédios e alimentos, medidas que só dependem da vontade política do Governo Federal.

Para além das condições básicas de vida, esta situação ainda retira do povo Kaiowá a possibilidade de viver conforme seus costumes e tradicionalidade, colocando em risco a preservação de sua cultura e ferindo direitos constitucionais e sagrados deste povo. O Grupo de trabalho técnico (GT) da FUNAI foi instaurado ainda em 2008, porém, mesmo com o reconhecimento da tradicionalidade da terra indígena por parte do órgão indigenista, a demarcação não foi assegurada. A situação veio a piorar uma vez que procedimentos demarcatórios encontram-se paralisados por determinação do Governo Federal, deixando os indígenas sem expectativas de resolução pelas vias institucionais.

Os Kaiowá exigem a imediata continuação dos procedimentos demarcatórios em Kurussu Ambá por parte do Governo Federal e solicitam em caráter de urgência  ao Ministério Publico Federal e a Polícia Federal que todas as medidas para garantir a segurança das famílias sejam tomadas, tendo em vista o amplo histórico de violência contra os povos indígenas praticados por pistoleiros sabidamente ligados ás fazendas locais. Desde 2007, quando começaram as tentativas de retomada de Kurussu Amba, mais de 03 lideranças indígenas foram assassinadas à céu aberto e muitos outros, inclusive velhos e crianças pereceram expostos a diversos tipos de violência.

Um breve histórico da situação de violência sofrida pelos Kaiowa de Kurussu Ambá:

– A terra sagrada de Kurussu Ambá trata-se de um território tradicional imemorial do povo Kaiowa e passou a ser reivindicado através de retomadas por parte dos indígenas a partir de janeiro 2007. Na ocasião os indígenas foram expulsos de seu território pela ação de pistoleiros. Diversos indígenas foram espancados e tiveram seus corpos baleados e a rezadora Xurite Lopes, uma senhora de mais de 70 anos, foi assassinada.

– No mesmo ano, obstinados por recuperar seu território, os indígenas iniciaram novo processo de retomada e novamente tiveram uma liderança assassinada por pistoleiros. Desta vez foi o indígena Ortiz Lopes que acabou perdendo a vida na tentativa de devolver aos Kaiowa seu Tekoha.

– Em 2009, durante a terceira tentativa de retomada, com o GT da FUNAI já instaurado, Osvaldo Lopes foi também assassinado.

– A partir deste novo ataque sofrido os indígenas voltaram a viver em acampamentos de lona ao longo das rodovias e estradas existentes entre Amambai e Coronel Sapucaia em situação completamente desumana que gerou a morte de uma grande quantidade de crianças.

– Em novembro de 2009, os indígenas retomaram pela 4ª vez o pequeno pedaço de sua terra tradicional, ocupando uma pequena faixa de mato nos limites da reserva legal onde incide a fazenda Maria Auxiliadora. Sofreram processos de reintegração de posse porém sua permanência  foi garantida por decisão do Tribunal Regional Federal da Terceira Região-TRF3.

– Apesar de estarem dentro dos limites do seu território os indígenas foram mantidos estes últimos anos em uma espécie de confinamento. Com a paralização dos procedimentos demarcatórios os Kaiowá ficaram alijados de sua própria terra, sobrevivendo de maneira desumana, sem sequer terem suas condições básicas de vida supridas.

Campo Grande, 23 de setembro de 2014

Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

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