Carta da UFAC – Universidade Federal do Acre

Os professores, pesquisadores, estudantes, artistas, profissionais liberais, sindicalistas rurais e urbanos, lideranças indígenas e demais pessoas que subscrevem esta nota, reunidos no Anfiteatro “Garibaldi Brasil” da Universidade Federal do Acre, durante a realização do III Simpósio Linguagens e Identidades da/na Amazônia Sul-Ocidental e do II Colóquio as Amazônias, as Áfricas e as Áfricas na Pan-Amazônia, manifestam-se em repúdio a todas as formas de violências, cerceamentos ao direito à vida e a terra aos trabalhadores rurais e aos grupos e comunidades indígenas das Amazônias.

Manifestam-se, ainda, pelo direito à cidade, o fim de todas as formas de preconceitos e pelo reconhecimento das diferenças no exercício da cidadania e do direito ao espaço público.

Há pouco mais de um ano trabalhadores rurais e urbanos e inúmeras famílias de camponeses e indígenas do Departamento de Pando, na Bolívia, foram atingidos pela sanha covarde e genocida de grupos paramilitares que disseminaram todo seu ódio assassinando e violentando centenas de mulheres, crianças e homens naquela parte da Amazônia. Seus algozes fugiram para a cidade Brasiléia, no Brasil e continuam impunes até a presente data.

Há mais de 15 anos os Kaiowa Guarani, no Mato Grosso do Sul, lutam pela devolução e demarcação de suas terras ancestrais, invadidas pelo latifúndio e pelo agronegócio. O resultado dessa longa e inexplicável espera, tem provocado a morte de inúmeras crianças por desnutrição e o suicídio de centenas de jovens. A situação é gritante, principalmente, porque as lideranças Kaiowa Guarani têm sido sistematicamente assassinadas, por pistoleiros a mando do agronegócio, com a cumplicidade de autoridades governamentais que deixam tais crimes na mais completa impunidade. Exemplo dessa lamentável realidade foi o que ocorreu, há duas semanas, em Paranhos – MS, com o desaparecimento e cruel assassinato dos professores Guaranis Genivaldo Vera e Rolindo Vera (ainda desaparecido) da aldeia Pirajui.

Trabalhadores rurais, sem-terra e outras gentes das fronteiras Acre-Amazonas-Rondônia são condenados ao desaparecimento, ao “não lugar” de acampamentos miseráveis, impedidos de ter acesso a terra, sofrendo todas as formas de violências físicas, psíquicas e ambientais.

Sindicalistas e outros antigos habitantes da Reserva Extrativista Chico Mendes sofrem toda a sorte de retaliações por não aceitarem se submeter à política devastadora de um modelo de “desenvolvimento sustentável” baseado na exploração madeireira que nada mais significa que a mercantilização de suas vidas e da própria floresta.

Indignados, firmamos este documento, como um manifesto em defesa da vida, da liberdade e da igualdade na diferença. Para que a violência e a impunidade não continuem a prosperar em nossas Amazônias, em nossos territórios, em nossas culturas.

Finalizamos fazendo nossas as palavras da “Carta denúncia do Movimento de Professores Indígenas Guarani e Kaiowa”, juntando nossas vozes às suas vozes e fazendo de suas denúncias, nossas denúncias, com a perspectiva de que os mandantes, autores e cúmplices das práticas criminosas que se abatem sobre os Kaiowa Guarani e sobre todas as gentes de nossas fronteiras Amazônicas e Pan-Amazônicas sejam rigorosamente punidos:

“Rolindo e Genivaldo tinham sonhos: tekohá, escola, vida.

São pais, filhos, esposos, professores, estudantes.

Cada vez mais se tornavam líderes de sua comunidade.

Cada vez mais, se envolviam com os projetos de futuro de sua família e sua comunidade.

Cada vez mais se comprometiam com a educação em sua aldeia.

Os dois desapareceram. Não viverão nas terras que queriam viver, não vão mais fazer roça para alimentar seus filhos, não vão mais educar suas crianças, não vão mais dançar guaxiré, não vão fazer novas rezas, não vão ser tamõi.

Não verão a lei se cumprir. Por que ela demorou muito, muito mais que a bala que tirou a vida deles.

Guarani é como uma flor que brota da terra e desabrocha perfumando a natureza. E às vezes desaparece deixando um aroma no ar. É como as aves que vêm e desaparecem. Mas o nosso sentimento e a lágrima que cai no chão fortalecem o nosso espírito e volta a brilhar em nosso meio.

Mas até quando vamos ver as flores pisadas, as aves mortas e o sangue derramado? Até quando vamos ter que esperar para poder entrar em nosso chão? Até quando continuaremos a ser expulsos, confinados, discriminados, assassinados?

Enquanto esperamos, nosso tekohá vira canavial, nossas casas de reza viram usinas, nossos tape vira asfalto. Chamam isso de desenvolvimento. Como pode se dizer desenvolvida uma nação que não respeita a vida e sua própria lei? Uma nação que não sabe conviver?

Esse desrespeito vai contra tudo que é humano, contra tudo que as religiões pregam, contra tudo que a lei estabelece.

Por isso, apelamos para todos os países, para que vejam o que acontece nesse país, onde se tira a vida de jovens e crianças, onde se tira a autonomia e se aniquila um povo, onde se despreza uma cultura.

Por isso apelamos para o Presidente da República, que tantas vezes se manifestou a favor da justiça e dos direitos humanos, para que convoque os poderes, em todos os âmbitos, para que a lei seja cumprida, que não meça esforços para investigar se Rolindo Vera está vivo ou morto, para punir os culpados pela morte de nossos patrícios e, principalmente, para que os grupos de trabalho instituídos pela FUNAI possam começar os estudos para a demarcação das terras indígenas, evitando mais mortes”.

Rio Branco – Acre, 23 de novembro de 2009

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