Carta do Povo Guarani e Kaiowá em repúdio à violência contra os povos indígenas em MS

Há 500 anos os povos indígenas sofrem a expulsão de suas terras, a perda de suas vidas, o esfacelamento dos seus modos de vida.

Durante este tempo, perderam suas terras, perderam parte dos seus conhecimentos tradicionais, perderam suas línguas maternas, perderam suas vidas.

Foi uma luta grande para garantir na Constituição que agora está em vigor um pouco de direitos para os povos indígenas no Brasil.

Mas se este direito está no papel, onde está ele na prática? Desde 1988 esperamos pela demarcação de nossas terras, como direito constituído. Passaram-se 20 anos e nada acontece.

Para que este direito se efetive, continuamos lutando. Em outubro de 2009, aconteceu uma Aty Guassu em Yvy Katu, onde os mais velhos disseram, em resposta à tentativa de convencê-los a esperar mais um pouco,  que estavam cansados de esperar e se as autoridades não quisessem ver muitos índios mortos, que fizessem logo alguma coisa para  que o direito se cumpra, porque iam sair dali direto para seus tekohá.

Parece que palavra de índio não encontra eco, neste país. Ninguém acredita. Ninguém ouve.

E quando um grupo de índios tenta entrar na terra que é sua originalmente, ninguém leva em conta que eles têm direito a reivindicar aquela terra e que têm direito às suas vidas: qualquer um atira para matar, em nome da defesa da propriedade privada.

Quando os brancos chegaram às nossas terras, ninguém considerou que nós tínhamos direito a elas, que queríamos criar nelas os nossos filhos, plantar nelas os nossos alimentos, viver nelas com os nossos deuses. E foram matando os índios que nela estavam, para ocupar as terras, para roubar nosso trabalho.

Agora os brancos dizem que a terra é deles e acham que têm o direito de continuar matando. Matar os índios que querem entrar nas terras de seus avós.  Matar porque têm um título que diz que a terra é deles.

Isso continua e continua acontecendo. Em Paranhos, MS, no final de novembro, um grupo de pistoleiros atirou sobre um grupo Guarani que tentava entrar na terra de seus pais. Machucaram muita gente, dispersaram o grupo, crianças se perderam e dois professores índios não voltaram. Desapareceram.

Rolindo Vera e Genivaldo Vera, os dois professores desaparecidos, são da aldeia Pirajui.

Rolindo e Genivaldo tinham sonhos: tekohá, escola, vida.

São pais, filhos, esposos, professores, estudantes.

Cada vez mais se tornavam líderes de sua comunidade.

Cada vez mais, se envolviam com os projetos de futuro de sua família e sua comunidade.

Cada vez mais se comprometiam com a educação em sua aldeia.

Os dois desapareceram. Não viverão nas terras que queriam viver, não vão mais fazer roça para alimentar seus filhos, não vão mais educar suas crianças, não vão mais dançar guaxiré, não vão fazer novas rezas, não vão ser tamõi.

Não verão a lei se cumprir. Por que ela demorou muito, muito mais que a bala que tirou a vida deles.

Guarani é como uma flor que brota da terra e desabrocha perfumando a natureza. E às vezes desaparece deixando um aroma no ar. É como as aves que vêm e desaparecem. Mas o nosso sentimento e a lágrima que cai no chão fortalecem o nosso espírito e volta a brilhar em nosso meio.

Mas até quando vamos ver as flores pisadas, as aves mortas e o sangue derramado? Até quando vamos ter que esperar para poder entrar em nosso chão? Até quando continuaremos a ser expulsos, confinados, discriminados, assassinados?

Enquanto esperamos, nosso tekohá vira canavial, nossas casas de reza viram usinas, nossos tape vira asfalto. Chamam isso de desenvolvimento. Como pode se dizer desenvolvida uma nação  que não respeita a vida e sua própria lei? Uma nação que não sabe conviver?

Esse desrespeito vai contra tudo que é humano, contra tudo que as religiões pregam, contra tudo que a lei estabelece.

Por isso, apelamos para todos os países, para que vejam o que acontece nesse país, onde se tira a vida de jovens e crianças, onde se tira a autonomia e se aniquila um povo, onde se despreza uma cultura.

Por isso apelamos para o Presidente da República, que tantas vezes se manifestou a favor da justiça e dos direitos humanos, para que convoque os poderes, em todos os âmbitos, para que a lei seja cumprida, que não meça esforços para investigar se Rolindo Vera está vivo ou morto, para punir os culpados pela morte de nossos patrícios, e principalmente, para que os grupos de trabalho instituídos pela FUNAI possam começar os estudos para a demarcação das terras indígenas, evitando mais mortes.

DEMARCAÇÃO DAS TERRAS GUARANI E KAIOWÁ JÁ!  VIDA PARA OS GUARANI E KAIOWÁ!

COMISSÃO DE DIREITOS INDÍGENAS, ATY GUASU, MOVIMENTO DE PROFESSORES GUARANI E KAIOWÁ, ASSIND, ESTUDANTES DO ÁRA VERÁ, ESTUDANTES DO TEKO ARANDU.

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