Indígenas Mura são ameaçados por grileiros no Amazonas

Há nove anos, grileiros derrubaram casas de famílias da etnia Mura, em Careiro Castanho. Ameaça volta a se repetir (Foto: Arquivo do povo Mura)

Por: Elaíze Farias

Manaus (AM) – Indígenas do povo Mura da Terra Indígena Lago do Piranha, no município de Careiro Castanho, a 88 quilômetros de Manaus, vêm sendo intimidados e ameaçados há nove anos por um grileiro identificado como Fernando Ferreira Lima, que alega ser o proprietário do local. Lima já vendeu lotes de terras para ocupantes não-indígenas, que também fazem ameaças e proíbem os Mura de transitarem livremente em seu próprio território.

As mais recentes ameaças aconteceram no mês de agosto deste ano. A primeira, no dia 15, segundo os indígenas, quando funcionários do grileiro foram até o Lago do Piranha para anunciar que eles retornariam para derrubar casas e a escola indígena, atualmente em construção. Eles também ameaçaram dois indígenas apontando um revólver calibre 38.

No dia seguinte (16), as lideranças Mura denunciaram a ameaça de Fernando Ferreira Lima à Coordenação Regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Manaus. De nada adiantou e funcionários do grileiro voltaram ao local para nova tentativa de intimidação, cinco dias depois. 

“Hoje, dia 20 de agosto, às 9h15, entraram na aldeia Piranha dois capangas do empresário Fernando Ferreira Lima. Pararam no porto de dois indígenas a mando do empresário e disseram que era para um indígena ir até ele que precisava falar com ele urgente, que assim que o empresário passasse era para ele ir no porto de outro indígena. Eles falaram que daqui para sábado [24 de agosto] entram na aldeia para fazer o que foi prometido”, relatou uma liderança da comunidade, em texto escrito à mão, ao qual a agência Amazônia Real teve acesso. O autor não se identificou por receio de novas ameaças.

A ameaça ainda não se concretizou, mas a apreensão é grande entre os indígenas. “Corremos um grande perigo aqui. Ficamos sexta, sábado e domingo reunidos, esperando a entrada deles. Não vieram, mas continuamos preocupados. Há nove anos eles entraram aqui, armados, e derrubaram nossas casas. Vieram com apoio de Polícia Militar, intimidando nós”, disse uma indígena, que não quer ter seu nome publicado por receio de novas intimidações. Os Mura procuraram também o Ministério Público Federal (MPF) para denunciar o grileiro.

Segundo dados da Coordenação Regional da Funai em Manaus, Fernando Ferreira Lima vende os lotes portando um documento de cadeia dominial do imóvel que está sendo contestado na Justiça Federal. O processo de demarcação do território indígena do Lago do Piranha está em curso na Funai desde 2007.  No local, vivem cerca de 50 famílias Mura.

Em 17 de agosto passado, a juíza Jaiza Fraxe acatou pedido da Procuradoria Federal Especializada junto à Funai, órgão da Advocacia Geral da União (AGU), em tutela cautelar de urgência, para impedir que Lima volte a ameaçar os indígenas e  deixe de vender os lotes ilegalmente.

Ela determinou ainda que Fernando Ferreira Lima e Valdira Barreto Lima se “abstenham de qualquer ato de turbação ou esbulho contra a Comunidade Indígena do Lago do Piranha, incluindo a prática de loteamento ou venda de terreno que possa afetar a comunidade indígena em referência”. Jaiza Fraxe aplicou multa diária de R$ 50 mil para qualquer desrespeito da decisão.

A juíza também solicitou que a Superintendência da Polícia Federal do Amazonas deslocasse uma equipe ao local para “verificar e evitar atos de violência” e realizar “investigações, autuações e apreensões de pessoas, instrumentos, objetos e todos os atos que caracterizarem flagrante delito”, incluindo o uso indevido “de arma de fogo”.

Jaiza Fraxe autorizou a Funai e o MPF a solicitar, se necessário, apoio do Exército. A decisão foi ratificada parcialmente pela juíza Rafaella Cássia de Souza, no dia 19 de agosto, mas esta solicitou mais informações da Funai para confirmar a necessidade da presença da PF e do Exército no local.

Funcionários de grileiro atacam casa original dos Mura
(Foto reprodução)

Os moradores do Lago do Piranha estão preocupados com a ameaça à escola, que está com a construção interrompida desde julho, pela Prefeitura de Careiro Castanho. Eles não sabem quando as obras retornam. Os 52 alunos do ensino fundamental e da educação de jovens e adultos (EJA) estão tendo aulas em um espaço improvisado e desconfortável, segundo os moradores.

O coordenador do Conselho Indígena Mura, José Cláudio Mura, que relatou as ameaças para a Coordenação Regional da Funai em Manaus, disse à Amazônia Real que Fernando vem ameaçando “seus parentes” há muito tempo. “Ele engana muita gente e faz ameaças. Há nove anos ele prometeu derrubar as casas dos Mura e fez o que fez: destruiu casas, igreja, escolas. Agora, voltou a ameaçar. Disse que iria derrubar a escola. A terra não é dele. A justiça reconheceu a área como legítima e tradicional do povo Mura”, afirmou o coordenador.

Segundo relatos dos indígenas, as ameaças e intimidações também ocorrem por parte de moradores não-indígenas. Eles também impedem que os Mura transitem livremente e proíbem a pesca em determinados lagos e rios. “Além desse Fernando, tem os posseiros que compraram os lotes que infernizam nós aqui, e já ameaçaram nossos parentes. Um indígena nosso não pode fazer um roçado, porque eles vão lá e embargam, dizendo que o terreno é deles. Se entrar para tirar uma madeira para fazer uma casinha aqui, os caras tiram foto e denunciam para o empresário, dizendo que estamos acabando com a madeira deles. Não podemos dar um passo, que eles dão informações sobre nós ao Fernando”, disse um morador.

Relatório de 2016 feito pela Funai mostra que Fernando Ferreira Lima “está loteando a área e tem 60 lotes novos”. Junto do loteamento, também ocorre a retirada de madeira. Um tuxaua da comunidade afirma no relatório que “muitos dos moradores indígenas têm perdido seus terrenos para os brancos, e ido morar fora da comunidade, indo para a estrada, e dizem que somente quando a Funai demarcar suas terras voltarão”.

Conforme o tuxaua, o povo Mura encontra-se “encurralado, pois cada vez mais tem ficado sem terra para trabalhar e que os novos posseiros não deixam [os indígenas] trabalharem na terra”. Ele disse que ao redor da terra indígena, foram construídos ainda hotéis de selva. Segundo o tuxaua, nos meses de agosto a novembro, turistas entram em seu território, usando igarapés e lagos.

Em uma notificação de 6 de março de 2013, a Funai afirma que a área denominada Lago do Piranha é de ocupação tradicional do povo indígena Mura. A reivindicação está no cadastro da Diretoria de Proteção Territorial do órgão, datado de 15 de maio de 2007. Em 2013, estava em processo de “qualificação”. No ofício, a Funai solicita que os não-indígenas saiam do território e retirem suas casas, sob pena de ação judicial.

O que dizem as autoridades?

Obra da escola na comunidade Lago do Piranha está parada (Foto: Arquivo pessoal)

A Amazônia Real procurou a assessoria de comunicação da Funai, em Brasília, para saber o andamento do processo da demarcação do Lago do Piranha, mas não recebeu respostas para as perguntas da reportagem.

Segundo a assessoria da AGU, Fernando e Valdira foram intimados no dia 21 de agosto sobre a decisão. O órgão informou, ainda, que se houver descumprimento da decisão, “adotará as medida cabíveis para executar a multa fixada, bem como ingressará na Justiça com outros pedidos para garantir a efetividade da decisão”.

O Ministério Público Federal no Amazonas disse, em nota à Amazônia Real, que a expedição da decisão liminar, determinando a abstenção de atos de Fernando Ferreira Lima e Valdira Barreto Lima na aldeia Lago do Piranha, e diante da informação de que persistiam as ameaças aos indígenas, por parte do empresário Fernando Lima, o órgão requereu determinação judicial para que Polícia Federal e o Exército se deslocassem à aldeia.

No entanto, segundo a assessoria, “ao analisar o pedido do MPF, a Justiça Federal confirmou a decisão liminar anterior e entendeu que não cabia, no momento, manifestação judicial para determinar o deslocamento da Polícia Federal e do Exército”. O MPF destacou na nota que, apesar de não haver determinação judicial, não há impedimento para que órgãos como a Polícia Federal realizem providências na área da aldeia, como considerarem melhor”.

A assessoria da Polícia Federal foi procurada para responder se o órgão atenderia ao pedido, mas não respondeu até a publicação desta matéria. A Amazônia Real não conseguiu encontrar o contato de Fernando Ferreira Lima e Valdira Barreto Lima para que eles pudessem se posicionar. 

O prefeito de Careiro Castanho, Nathan Macena (Pros), foi procurado para falar sobre as obras da escola, mas não atendeu às ligações, nem respondeu as mensagens enviadas por rede social.

Histórico de invasões e ameaças

Casa derrubada, em ataque de grileiro ocorrido há nove anos (Foto: Arquivo pessoal)

Na petição enviada à Justiça Federal, a Procuradoria Federal da Funai afirma que “o povo Mura é, historicamente, conhecido como um povo que foi perseguido pela Coroa Portuguesa, pelo Império Brasileiro e que, até hoje, sofre com a dificuldade de manutenção de seu território tradicional, diante de frequentes ameaças, notadamente de fazendeiros, nas regiões de Careiro e Autazes”.

O povo Mura do Lago do Piranha, conforme relata a petição, tem um histórico de pressão territorial idêntico à Terra Indígena Lago do Marinheiro. Ambas as áreas são vizinhas.

“A invasão fixa ou eventual da área por não-índios parece constituir uma importante causa direta ou indireta de algumas das migrações observadas na TI Lago do Marinheiro. As constantes limitações que tais indivíduos impõem aos Mura no tocante à exploração de recursos naturais, seja na grandeza das áreas exploradas, seja na partilha de um usufruto legalmente exclusivo aos índios, gera impossibilidades e debilidades em sua subsistência física e cultural, bem como conflitos constantes”, diz trecho do documento.

Grilagem em terras indígenas se intensificou

Desmatamento na Terra Indígena Karipuna, em 2018
(Foto: Christian Braga/Greenpeace)

A prática de invasão e grilagem em terras indígenas tem se intensificado nos últimos anos na Amazônia, mas teve um aumento expressivo em 2019, com a expectativa de que não haverá mais demarcação de terras indígenas, como prometeu o presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Um desses territórios é o Trincheira-Bacajá, do povo Xikrin, na região dos municípios de Altamira e São Félix do Xingu, no Pará. Durante sobrevoo realizado na semana passada, as autoridades constataram a existência de áreas desmatadas no interior da terra indígena, invasões com lotes e casas e ainda garimpos ilegais.

Outro território ameaçado é o do povo Karipuna, em Rondônia, com exploração de madeira ilegal e atividade de grilagem. Segundo a Polícia Federal, 11 mil hectares da terra indígena já foram devastados pelos invasores.

Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, também em Rondônia, a grilagem é uma atividade de longa data, mas piorou em 2017, quando lotes de terras estavam sendo vendidos pelos invasores. A Polícia Federal chegou a fazer uma operação, mas os grileiros não pararam. Desde o início de 2019, os Uru-Eu-Wau-Wau enfrentam nova frente de grilagem, invasão de madeireiros e garimpeiros em seu território.

Fonte: amazoniareal

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