A Santa Elina é do povo! Leia a entrevista com membro do CODEVISE

A Santa Elina é do povo!

Entrevista com membro do CODEVISE – Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina

Placa na entrada da fazenda tomada pelos camponesesNo dia 11 de maio as famílias vítimas do massacre de Corumbiara juntamente com outros acampados da região de Cerejeiras e Corumbiara retomaram a fazenda Santa Elina. Isto após quase 13 anos do violento ataque de tropas da Polícia Militar de Rondônia e pistoleiros a mando de latifundiários da região, que resultou na morte de 9 camponeses, entre eles a pequena Vanessa de 7 anos. Além dos assassinatos, pessoas desapareceram e centenas de camponeses ficaram gravemente feridos devido às torturas e espancamentos a que foram submetidos. Para falar sobre este feito importante entrevistamos Elias Quirino, que estava acampado na fazenda em 1995 e é membro do Codevise – Comitê de Defesa das Vítimas de Santa Elina.

Resistência Camponesa: Fale um pouco sobre a origem do CODEVISE e sua luta?

Elias: A ideia de conformar um Comitê das Vítimas de Santa Elina surgiu para enfrentarmos coletivamente os problemas que diziam respeito a todos nós, como o tratamento de saúde dos companheiros vítimas de torturas, espancamentos, balas encravadas e outras sequelas graves.

Foto da tomada da Fazenda Santa Elina em 1995Outra questão era a luta sobre os processos na justiça e sobre a indenização das famílias.

Em 2001 reunimos as vítimas que moravam em Corumbiara e Theobroma, além de advogados, estudantes, professores e demais apoiadores e fundamos o CODEVISE. Na época realizamos um ato de fundação na cidade de Corumbiara. A Liga de Camponeses Pobres sempre apoiou, pois têm suas origens na heroica resistência dos camponeses de Santa Elina.

Desde 1995 temos recebido apoio do Socorro Popular para o tratamento de saúde dos companheiros em outros estados, e este é um trabalho muito importante para nós. Mas isso era responsabilidade do governo.

Nestes anos todos realizamos um trabalho de levantamento de informações sobre a situação de cada um, reuniões para explicar os passos a serem dados para alcançarmos nossos objetivos. Fomos muito enrolados por advogados na questão dos processos, mas com o tempo ficou claro para nós que a justiça de Rondônia serve aos latifundiários e jamais será contra eles.

Mas não desanimamos! A experiência mostrou que era preciso lutar com mais decisão. Hoje nossas principais reivindicações são o corte imediato da Fazenda Santa Elina e a indenização para todas as famílias.

Lula em campanha eleitoral visita Corumbiara em 1995Em agosto de 2007 estivemos 23 dias acampados em Brasília para negociação do corte da fazenda e das indenizações. Fizemos reuniões com o presidente do INCRA, Rolf Hackbartl, com Paulo Vanucchi da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, e com o chefe do gabinete pessoal do presidente da republica, Gilberto Carvalho. Foram firmados os seguintes compromissos:

– Seria reconhecido o papel do CODEVISE como entidade representativa das famílias vítimas do chamado massacre de Corumbiara.

– Em 60 dias o secretário Especial dos Direitos Humanos e o presidente do INCRA iriam à região de Corumbiara.

– Assentar as famílias que ainda não tem terra e iniciar processo de reforma agrária na Fazenda Santa Elina

– Indenização para todas as vítimas.

– Marcar audiência com o presidente Luis Inácio.

Depois de dominados os camponeses foram torturados pela polícia e pistoleirosNenhum dos compromissos assumidos foi cumprido. Eles marcaram audiência dia 25 de novembro de 2007, aonde eles vieram até Ji-Paraná, mas era pra ir dentro de Corumbiara, e eles não foram. Mobilizamos 440 famílias, levamos lá e de frente a multidão o Paulo Vanucchi disse que a responsabilidade de pagar as indenizações era do governo do estado e falou ainda que, se cruzássemos os braços ia passar mais 20 anos sem nada ser resolvido, aí simplesmente virou as costas e foi embora.

Sem falar que na ocasião um forte aparato policial constrangeu os companheiros revistando bolsas e pertences dentro do auditório como se a gente fosse bandido. Depois disso mobilizamos novamente as famílias, ocupamos a assembleia legislativa, ficamos três dias tentando falar com o governador Cassol, mas ele só mandou o secretário, e nada foi resolvido. Prometeu ambulância, remédio, recurso e nunca aconteceu nada.

Depois mandaram de Brasília o secretário do ministro da saúde para vir arrumar remédio e tratamento, que tentou jogar para as prefeituras o tratamento do pessoal. Os prefeitos protestaram dizendo que é responsabilidade dos governos estadual e federal e não dos municípios. Ai novamente não deu em nada, eles pegaram e levaram algumas pessoas pra Porto Velho, não deram tratamento e deixaram as vítimas jogadas na porta dos hospitais. Vimos que esses políticos nada vão fazer pelo povo, ficam só empurrando o problema uns pros outros. Cansamos de enrolação. O que a gente ia fazer então? Fizemos foi ocupar a fazenda Santa Elina.

RC: Como foi a preparação e mobilização das famílias para a tomada da Santa Elina?

Elias: Desde o início do ano temos feito reuniões com os companheiros e nos dois últimos meses concluímos o trabalho de mobilização. Nós do CODEVISE juntamos famílias e parentes das vítimas mais três acampamentos que estão enrolados pelo INCRA há mais de 5 anos. No dia 11 de março entramos com 22 famílias porque a polícia não deixou a gente embarcar no caminhão, dizendo que pau de arara não existe mais. Aí conseguimos chegar lá com dois jericos carregando 22 pessoas. Acampamos dentro da fazenda, e no outro dia começou a chegar mais gente. Hoje estamos em 250 famílias. E cabe mais, só nessa fazenda são 18 mil hectares

RC: Qual a origem dessas famílias que tem se incorporado?

Elias: Essas famílias vêm de vários municípios de Rondônia, e está vindo gente até de Mato Grosso, de Comodoro por exemplo. Muitas dessas famílias são vítimas que desde 1995 não receberam terra e foram embora atrás de um emprego. Quando ouviram falar que retomamos a Santa Elina, elas vieram então de tudo quanto é canto está aparecendo famílias. Todos querem o seu lote, e nós falamos então vem pra dentro que seu lote está aqui. A Fazenda Santa Elina vai ser cortada para as vítimas e para todas aquelas pessoas que não tem terra pra trabalhar.

RC: Como os camponeses se organizam na área?

Elias: A principal forma de organização é a Assembleia, onde as famílias decidem sobre todos os problemas coletivamente. Além das Assembleias são criadas várias comissões e equipes para executar as tarefas. Tem comissão de construção de barraco, de limpeza, organização, segurança, e outras. Pra tudo tem uma comissão que aplica as decisões definidas na Assembleia. Tem também o controle do acampamento, pra não entrar bebida, droga. Isso foi definido quando a gente fez o estatuto do acampamento que foi aprovado pela maioria dos acampados.

RC: Quais as principais regras deste estatuto?

Elias: O estatuto consta não entrar bebida alcoólica e nem bêbado, não entrar droga e nem drogado, porque isso prejudica nossa luta. Todos devem realizar as tarefas do acampamento, não tem opção de só fazer uma coisa. Lá todos devem ajudar em todo tipo de tarefa que for necessária. Todos devem permanecer pelo menos 13 dias dentro do acampamento e três dias fora. A terra é sem direito a venda, muita gente voltou pra trás porque só queria terra pra vender em troco de uma moto. Aqui em 1995 muitos companheiros perderam as suas vidas lutando por essas terras, então não tem esse direito de vender o lote, porque começa a vender um, dois, três e logo o latifúndio toma conta outra vez.

RC: Os camponeses têm recebido apoio e solidariedade?

Camponeses se preparam para uma AssembleiaElias: Sim, temos recebido muito apoio. Muitos camponeses que já lutaram e conquistaram um pedaço de terra hoje nos ajudam. As famílias do assentamento Adriana que é vizinho da fazenda estão ajudando com o leite para as crianças. Hoje deve ter umas 80 crianças no acampamento. Além do leite eles também ajudam com o arroz.

Os comerciantes da cidade também nos apoiam muito. Com a soja e cana tomando conta de tudo, as cidades da região estão acabando, o pessoal está indo pra outros cantos, e se não tem gente na cidade como o comércio vai pra frente? O latifundiário não compra nada daqui, só gasta o dinheiro nos grandes centros. São os camponeses é que fazem a economia das pequenas cidades prosperarem. E os comerciantes enxergam essa situação e por isso nos apoiam.

Também temos recebido apoio de sindicatos e da igreja que através da pastoral da saúde tem ajudado com remédios. Desde que tomamos a fazenda temos recebido várias visitas de estudantes da UNIR de Vilhena e Porto Velho. O DCE da UNIR por exemplo, nos apoiou desde a ida para Brasília, ajudando na mobilização, arrecadação de recursos e na divulgação da nossa luta. Recentemente eles fizeram uma carta aberta ao povo, apoiando o corte da fazenda Santa Elina. Isso é muito importante porque quando começamos a nos unir, aí acontece alguma coisa em favor do povo.

Mas existem também os que querem tirar proveito da luta do povo, como é o caso da Fetagro que tentou usar a luta das vítimas para ganhar dinheiro com projetos. Sempre jogaram contra ocupações de terra e agora querem tirar proveito eleitoreiro. Este tipo de gente não queremos lá dentro. O deputado Anselmo por exemplo, deu uma declaração recente para a TV Câmara, apoiando a repressão da polícia aos camponeses no Pará e disse que em Rondônia teria que fazer o mesmo. Logo ele que se elege com o voto do povo do campo. Não é a toa que o PT é aliado do grupo Eucatur.

RC: Os camponeses vão cortar a fazenda, ou vão esperar pelo INCRA?

Elias: A decisão é cortar a fazenda em lotes de 21 alqueires, há tempos viemos esperando essa terra e ninguém faz nada. Então decidimos que vamos cortar por nossa conta.

RC: Em 13 anos o Estado não fez nada em favor das vítimas. Mas bastou que o povo retomasse a fazenda e em apenas uma semana o juiz de Colorado D’Oeste expediu mandato de reintegração de posse, mandando os camponeses saírem da área. Qual a sua opinião sobre isso?

Elias: Isso serve para mostrar, mais uma vez, que o Estado só defende os interesses do latifúndio. Eles não defendem o povo, só falam do povo quando precisam do voto. Como esse ano é ano de eleição eles já começam a procurar pelo povo, mas é por causa do voto. Mas pra cortar a terra nunca apareceu ninguém.

Enquanto nós esperamos por anos o compromisso deles, com oito dias que as famílias estavam lá dentro chegou a tropa da polícia fazendo o pessoal sentar na marra, dando tiro pra cima. Esse juiz é comprado pelos grandes latifundiários da região, tem seis meses no cargo, sequer conhece o município de Corumbiara.

A integridade das pessoas que estão na fazenda é de responsabilidade de todo o Estado brasileiro. Principalmente do Lula que prometeu cortar a fazenda e punir os responsáveis pelos assassinatos dos companheiros. Mas até hoje, 13 anos depois, nada foi feito. Já cansamos de esperar, agora nós vamos cortar a fazenda, entregar pro povo trabalhar, que aí sim, vamos ter tempo de esperar que eles façam alguma coisa.

RC: O juiz que expediu a reintegração de posse da fazenda se baseou num relatório do INCRA que diz que a fazenda é altamente produtiva. Isso é verdade?

Elias: Não, não é verdade. A gente está no local, conhece toda a fazenda a mais de 12 anos, a gente vê o que acontece lá e não tem movimento nenhum, nem gado deles têm lá. O gado que tinha era arrendado.

Nesse laudo que o INCRA fez, fala que lá tem plantio de arroz e não tem nada disso. Outra comprovação das mentiras é que foram emitidas notas fiscais sem pagar impostos.

Eles falaram que nós entramos na mata abrindo clareira. Nós estamos dentro de um pasto cheio de cocho e sal, que eles falam que é uma reserva do meio ambiente. Não existe isso! Na fazenda só tem capoeira e capim. Não tem roça nenhuma lá.

RC: Tem saído na imprensa do latifúndio, que pode acontecer um novo massacre, que a polícia está preparando a reintegração de posse, e é grande a mobilização de pistoleiros na região. Como está o ânimo e disposição das famílias diante disso?

Elias: Nós sabemos que o latifundiário está enchendo a fazenda de guaxebas. E isso foi denunciado em reunião com a Ouvidoria Agrária e diversos órgãos do governo.

Não queremos que aconteça um segundo massacre, eles falam pra gente sair da área, nós falamos que não, nós não temos mais canto pra ficar, somos desempregados, não temos comida, e na terra nós vamos produzir e sustentar nossas famílias.

RC: Agradecemos a oportunidade em nos conceder essa entrevista. Vamos acompanhar os desdobramentos dessa importante luta e desejamos sucesso. Gostaria de fazer alguma consideração final?

Elias: Nós agradecemos o apoio de vocês. Conhecemos o trabalho do jornal e sabemos que é um trabalho sério, que mostra a realidade do campo hoje.

A gente quer que o povo acredite na Revolução Agrária, que só ela que vai tirar o nosso povo da miséria. A reforma agrária não existe, existe Revolução Agrária. A Revolução Agrária está acontecendo, nela os camponeses tomamos latifúndios e cortam a terra por conta. Eu era criança tinha seis anos de idade e já ouvia falar na reforma agrária, e ela nunca existiu, então quando falou na Revolução Agrária, essa aí eu vi vantagem pro povo e estou vendo acontecer.

Nada nos fará desistir da Fazenda Santa Elina, vamos cortar essa terra custe o que custar.

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