O avanço desenfreado da grilagem latifundiária de terras públicas

Publicado originalmente por João Alves em anovademocracia.com.br, em 11 de maio de 2022


O portal “De olho nos ruralistas” e “O joio e o trigo” divulgaram uma série de artigos tratando do programa do governo federal Titula Brasil que busca facilitar a passagem de milhões de hectares de terras públicas diretamente para o controle do latifúndio. No artigo publicado no dia 12 de abril, assinado por Mariana Franco Ramos, o programa é denunciado como “maior ofensiva de grilagem pós-ditadura” apontando para a continuidade e a recente escalada da política latifundiária do velho Estado burocrático-latifundiário brasileiro durante o governo militar reacionário de Bolsonaro e generais.

O que é o Titula Brasil?

O Titula Brasil altera a Lei 11.952/09, através de um conjunto de decretos, normativas e portarias, e “dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal”.

Antecedente ao Titula Brasil, a Medida Provisória 910/2019 possibilitou a transferência de terras públicas que foram invadidas por latifundiários antes do período de dezembro de 2019 – uma espécie de “marco temporal” do latifúndio.

O programa, por sua vez, foi lançado oficialmente em 10 de fevereiro de 2021 e tem como objetivo tornar o processo de regularização fundiária de terras da União como responsabilidade dos municípios, além de possibilitar que a regularização seja feita inteiramente de forma virtual.

Foco é a Amazônia

Em um outro artigo do mesmo portal, de 04/04, é destrinchado que 1.198 municípios já solicitaram adesão ao programa Titula Brasil. Apesar de ser um programa à escala nacional, toda sua concepção foi para agilizar a regularização dos processos fundiários na Amazônia Legal. Isto está de acordo com a política de Jair Bolsonaro e do secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia.

Os nove estados que integram a Amazônia Legal concentram mais de 269 mil ocupações rurais em terras da União em uma área total de 56 milhões de hectares (equivalente ao território da França). Do total de municípios que aderiram ao programa, 39% são da região.

Segundo Gustavo Francisco Teixeira Prieto, os principais objetivos de Luiz Nabhan e Tereza Cristina são inconstitucionais, uma vez que a operação acontece em escala municipal, mas as terras são da União. 

Outros benefícios

O benefício à todo tipo de roubo de terras da União por latifundiários, através de fraudes e grilagem, é ainda reforçado pelo desmonte continuado do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Segundo as informações divulgadas a partir de dados da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef/Fenadsef) e a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (CNASI-AN), as verbas para créditos para pequenos e médios produtores, melhorias de assentamentos, monitoramento de conflitos fundiários e reconhecimento de territórios quilombolas sofreram um corte de 90%.

O governo aponta para a meta de regularizar mais de 300 mil famílias através dos governos municipais. O Incra teria somente a função de realizar uma checagem remota. Ao fortalecer o poder dos municípios no processo de regularização, ficará garantido os interesses de velhos coronéis e oligarcas locais, denuncia o portal.

Intelectuais denunciam política pró-latifúndio

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, juntamente com outros professores e pesquisadores de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), denunciam que “cerca de 60 a 65 milhões de hectares de terras públicas” podem ser transferidos para os latifundiários. 

A cobiça de terras da União se concentram principalmente na Amazônia, segundo o geógrafo Paulo Roberto Raposo Alentejano, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Segundo o pesquisador, a expansão da fronteira agrícola colocou como alvos não somente as terras devolutas, mas também “aquelas situadas em assentamentos”.

Juntamente à regularização da mineração e da exploração do chamado “agronegócio” de terras indígenas, as medidas são apontadas pelos intelectuais como um notável e direto benefício aos latifundiários, cuja expressão política é a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Deste processo sairá embates ainda maiores entre a produção para o latifúndio contra camponeses, indígenas e quilombolas, dado o impulsionamento político, jurídico e econômico dos monopólios latifundiários burocráticos.

Pedro Martins, da Terra de direitos, aponta que as terras regularizadas se integrarão ao mercado monopolizado pelos grandes proprietários rurais, que “já dominam a cadeia produtiva e só precisam se preocupar que as terras estejam disponíveis para a produção de soja, milho, carne…”.

Histórico das medidas latifundistas

Os geógrafos citados pelo portal “De olho nos ruralistas” afirmam que a estrutura agrária brasileira atual teve um ponto importante de impulsionamento do latifúndio a partir do velho Estado a partir dos anos de 1990 (durante o governo de FHC), quando da promulgação da Lei Kandir, que isentou a tributação de produtos primários voltados para a exportação. A isenção fiscal, que seguiu sendo regra, foi somada à falência da reforma agrária no período. Desde então, a grilagem feita pelos latifundiários é acompanhada pela indenização estatal, em um processo de regulação fundiária que atende exclusivamente aos grandes produtores.

A nomeação de nomes como Roberto Rodrigues, Blairo Maggi e Kátia Abreu para postos chaves nos governos petistas de Luiz Inácio e Dilma Rousseff é também denunciada pelo professor Alentejano, que relembra o fato de Luiz Inácio ter chamado os usineiros de “heróis”. Este processo, segundo o professor, é expressão do que chama de união entre o agronegócio e os diferentes governos petistas.

A produção de soja no período triplicou, o volume de crédito destinado ao latifúndio no período foi o maior já visto até então, dando impulsionamento à orientação agrário-exportadora do país.

Sobre as medidas jurídicas, pesquisadores da USP apontam que a grilagem entre 2009 e 2020 chegou a 190 milhões de hectares. Dentre eles está quase 70 milhões de hectares do Programa Terra Legal, de 2009 (governo de Luiz Inácio), 60 milhões de “regularização fundiária” promovida pelo governo reacionário de Michel Temer e mais 65 milhões de hectares até agora durante o governo militar de Bolsonaro e generais.

Concentração latifundiária e Revolução Agrária

O crescimento da concentração de terras nas mãos dos monopólios latifundiários e o crescente açambarcamento de terras públicas e despojos de posseiros são os fatores objetivos que conduziram ao crescimento, em quantidade e principalmente em qualidade, da luta pela terra, cujo centro é a Amazônia Ocidental, particularmente Rondônia.

Nessa região atua com proeminência a Liga dos Camponeses Pobres (LCP), movimento de massas camponesas que luta pela Revolução Agrária. A Revolução Agrária, como Programa Agrário de transformação radical do campo, é assim descrita pela LCP, no documento Nosso caminho, disponível na internet: “1) destruição do latifúndio e entrega das terras aos camponeses pobres sem terra ou com pouca terra; 2) libertação das forças produtivas do campo nas áreas tomadas do latifúndio, através da eliminação de todas as relações de produção baseadas na exploração do homem com a adoção de formas cooperadas. A organização em formas associativas das parcelas em diferentes níveis de cooperação segundo sua experiência, desde os Grupos de Ajuda Mútua, forma elementar a formas superiores de cooperação, passando por outros níveis de formas cooperativas. Adoção de meios de produção e instrumentos de trabalho mais avançados e das técnicas mais modernas; 3) organização e exercício do Poder político das massas nas áreas tomadas. Organização das diversas formas da participação das massas nos diferentes níveis para a tomada de decisões e do seu autogoverno (Assembléia Popular e o Comité Popular). Organizar a vida cultural, suas diversas manifestações. Organizar o sistema de autodefesa de massas. Organizar a nova Escola Popular baseada nos três princípios de estudar, trabalhar e lutar (investigação científica, produção e luta de classes) para liquidar o analfabetismo e promover a elevação do conhecimento científico e técnico de todos. Organizar um sistema popular de saúde preventiva e curativa (policlínicas); e 4) Estatização das grandes empresas capitalistas rurais e controle de sua produção e gestão pelos trabalhadores desde já nas áreas tomadas”.

Mais especificamente, os pilares são desdobrados da seguinte forma pela LCP: “1) Fim do latifúndio, a terra para quem nela trabalha; 2) A terra com destinação social segundo os interesses da imensa maioria do nosso povo e dos interesses nacionais; 3) Nacionalização da terra e estatização das grandes empresas capitalistas rurais, em perspectiva; 4) Por nova política agrícola e de créditos voltada para viabilizar os pequenos e médio proprietários; 5) Criação de agrovilas e promoção da agroindústria em toda região rural do país; 6) Criação do sistema de saúde dotado de toda infra-estrutura no campo; 7) Criação do sistema de educação centrado na concepção da Escola de novo tipo vinculada à produção e a luta de classes; 8) Organização social e política independente baseada na democracia direta das Assembléias Populares; 9) Política especial para a região de seca (semi-árido) região nordeste; 10) Política especial para a região amazônica, fim da exploração predatória e fortalecimento da produção agrícola segundo as vocações do meio geográfico, os interesses das massas trabalhadoras e da Nação; 11) Apoio à luta dos trabalhadores da cidade, desenvolver e fortalecer a aliança operário-camponesa; 12) Reconhecimento e apoio ativo à autodeterminação das nações e povos indígenas; 13) Fortalecimento e desenvolvimento ideológico-político das massas voltadas à coletivização da terra em perspectiva; 14) Por uma nova economia, uma nova cultura, uma nova política de nova democracia e um novo Poder Democrático Popular; 15) Solidariedade internacionalista com a luta dos povos contra o imperialismo e pelo progresso”.

Leia mais: Grandiosa resistência camponesa retoma área Tiago Campin dos Santos

No ano passado, em particular, o governo militar genocida de Bolsonaro e generais citou, ao menos duas vezes, a LCP como terrorista. No dia 1º de maio de 2021, Bolsonaro, em evento latifundiário, através de vídeo exibiu uma pichação assinada pelo movimento e qualificou como “terrorismo que começa no campo e vai até a cidade”, tratando-o como “muito pior do que o MST”. Meses depois, em inauguração da ponte sobre o Rio Madeira, na divisa de Acre e Rondônia, disse para a LCP se “preparar”, pois “temos meios para botá-los no trilho”. Além disso, o governo federal moveu milhares de tropas federais em dois grandes cercos militares contra áreas camponesas: Manoel Ribeiro, em Chupinguaia, e Tiago Campin dos Santos, em Nova Mutum Paraná, ambos em RO, indicando que a resistência camponesa ao avanço latifundista tem sido centralmente conduzida pela LCP e a Revolução Agrária.

Terras da união são griladas pelo latifúndio. Foto: Reprodução
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