O Estado apodrecido e a tergiversação do Direito

Em que pese o número de juristas em nosso país, dotados de enorme sapiência quando se trata da ciência do Direito e a formulação de novas teorias e ainda o brilhantismo de honrados advogados, ou mesmo a sede de Justiça de alguns magistrados.

Em que pesem as esperanças na lei, ou ainda a tentativa desesperadora de sustentar a sua existência, o fato é que o Estado não cumpre sua função social (se é que um dia se pretendeu atribuir alguma função social para esta espécie de Estado) e não respeita os humildes cidadãos deste país, espalhando a injustiça, a violência, a fome, a ignorância e outros tantos males.

O Estado brasileiro há muito está corrompido e, a bem da verdade, tomou o Direito para si e o tem utilizado em benefício próprio.

A colonização do país promovida pelos povos europeus, com predominância dos portugueses e espanhóis, através de um regime imposto e, na prática, conduzido por indivíduos pertencentes à alta burguesia recém-nascida naqueles países periféricos, representados por uma nobreza decadente, buscou um domínio baseado na ideia de que o poder só existia quando demarcado território.

Assim, as propriedades de terra foram demarcadas e tornaram fonte de riqueza de poucos. O restante estava à mercê de toda violência e exploração possível.

Na época, o Direito por aqui era o mesmo de lá, ou seja, era vigente o Direito português, porque os novos donos do Brasil eram afinal portugueses e não deixariam seus modos, hábitos, costumes e moral (se é que possuíam) em troca de tudo aquilo que descobriram com os indígenas que por aqui habitavam.

Os senhores e novos donos do Brasil eram a verdadeira lei. Por mais que houvesse um sistema normativo em Portugal, aqueles é que realmente criavam e executavam as leis, cada um em sua capitania. Capitanias estas que eram hereditárias e, assim, o poder era transferível para o sangue novo. Melhor dizendo, o poder era hereditário.

Mas não é preciso ir tão longe para analisar que, efetivamente, o Estado continua apodrecido.

Basta retroceder no tempo até o ano de 1964, quando o Brasil foi alvo de um golpe militar. Um golpe arquitetado fora do país, precisamente nos Estados Unidos da América do Norte. O golpe praticado através do Alto Comando das Forças Armadas é prova viva de que a “mão yankee” já há tempo manipula as peças deste jogo de xadrez.

Ora, se os EUA do Norte naquela época já controlavam as Forças Armadas do Brasil, o que é que não controlam neste país até os dias de hoje?

Interessa ressaltar que os militares também tinham o seu sistema normativo e, assim, também criaram Direito no Brasil. Afinal, basta lembrar o Código Tributário Nacional e a Lei de Anistia, e de tantas outras leis que foram criadas e promulgadas durante os “anos de chumbo”, sob verdadeiro controle ideológico-político externo, e que ainda continuam a vigorar.

Embora os militares tenham deixado de ser a ponta de lança do Estado, resguardando-se temporariamente nos quartéis, reapareceu a velha classe política que anteriormente foi incapaz de defender os interesses estrangeiros com a mesma eficácia: a velha aristocracia latifundiária, agora aliada aos banqueiros, que transformaram a máquina em um valioso investimento para o capital e dos velhos senhores exploradores das grandes potências. E para defender esta estrutura se dispôs de toda burocracia pública e privada, o que fez com surgisse, como larvas de insetos, aquilo que é devidamente denominada de burguesia-burocrática. É este novo cenário que os políticos e seus patrões de fora e de aqui dizem aos seus escravos, e ordenam que se estampe em jornais, se chamar de “democracia”.

Impõe-se fantasiosa teoria da tripartição dos poderes, a qual até hoje não foi assimilada pelo povo, uma vez que não há nenhum interesse do Estado que seja de outra forma, visto que a Constituição Federal de 1988, por mais belo e progressista texto que possua, não tenha a força suficiente para concretizar a liberdade, a igualdade e os demais princípios, fundamentos e objetivos da República entre toda a população. Triste ficção.

E ainda que se possa alegar a existência destes Três Poderes independentes entre si, conforme a letra da Carta Magna, a verdade é que estão muito mais para um tridente, aquele mesmo artefato medieval de guerra, onde há três pontas de lança unidas por um mesmo cabo e seguro por um único soldado. Ou seja, um mesmo comando para as três pontas de lança do Estado.

O que ocorre é uma corrida perpetrada por alguns senhores para fazer parte das pontas desta lança, a fim de obter algumas benesses que o sistema pode lhes oferecer em troca de seus serviços. E assim é que o Estado tem utilizado o Direito.

Na antigüidade, as leis romanas já procuravam reproduzir e formalizar os hábitos, costumes, moral e princípios nos quais a sociedade civil deveria estar alicerçada, conforme a vontade do Imperador, punindo os atos contrários e que afrontassem à ordem.

Sombra do Direito Romano na atualidade é o nosso Direito de Família e das Sucessões estampados no Código Civil, os quais parecem refletir melhor os costumes mais comuns aos romanos do que aqueles que pertencem à sociedade atual. Uma reprodução fiel das antigas instituições e que permanecem sendo instrumento de coerção social. De fato, as leis romanas continuam inspirando os senhores desta grande senzala e isto é algo que atrai muito mais os velhos burgueses estrangeiros, que se sentem muito mais confortáveis a este controle.

No Direito pátrio, em geral, o que se observa é uma produção exagerada de leis que não reproduzem em nada a realidade e as necessidades do povo. São todas elas criadas por um pequeno grupo no qual cada indivíduo possui e defende interesses particulares. Recorda-se de antiga frase atribuída a Tácito, na antiga Roma:

Corruptissima re publica plurimae leges (“Quão mais corrupto for o país, mais haverá leis”).

O Estado tem aprisionado o Direito e, desta forma, o utiliza a fim de alterar os seus fins, a corrompê-lo e promover a injustiça. Nega aos cidadãos mais pobres os direitos mais básicos e lhes submete a uma situação de vida indigna, enquanto provém aos seus comandantes e subalternos toda a proteção possível, aí sim promovendo o “bem-estar social”.

Aliás, não se pode esquecer o caso Daniel Dantas e o habeas corpus mais rápido da história do STF condicionado pela caneta do Sr. Gilmar Mendes.

Diante de um Estado putrefato, a população tem se organizado e se utilizado do imprescritível direito de resistência em busca de uma condição de vida melhor e para superar toda a opressão que sobre si recai. Todavia, este direito não tem sido reconhecido nem mesmo pelos “grandes” juristas deste país e pelos senhores magistrados, quem dirá a mídia reacionária de plantão.

Ocorre que o direito de resistência é o único instrumento que resta ao povo lutar pelo Direito. A luta pelo Direito é, na verdade, a busca pela Justiça. Se o Direito está aprisionado pelo Estado, do qual tira todo proveito em benefício próprio, ao povo cabe resistir e é então que a rebelião se justifica. Aqui se vale do pensamento de Rudolph Von Ihering.

Com o passar dos dias, nos é provado que a verdadeira democracia somente será conquistada quando o povo puder decidir o próprio destino, quando puder criar as suas leis conforme a sua realidade, rechaçando a repressão e destruindo este Estado apodrecido, consagrando o Direito como um dos instrumentos de promoção da paz e da Justiça.

Allan Andreassa Zanelato Sereia

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