As disputas pelo STR de Xapuri e o desenvolvimento sustentável no Acre

O acompanhamento do processo conflituoso que vem marcando a eleição para a presidência do Sindicato dos Trabalhadores Rurais-STR de Xapuri – trabalhadores em grande parte ocupantes da Reserva Extrativista Chico Mendes – tornou imperativa alguma forma de participação que viesse, minimamente, a tornar públicos os processos atualmente em curso no município onde viveu, lutou e morreu Chico Mendes. O propósito é, evidentemente, contribuir na tarefa de chamar atenção para a gritante e escandalosa contradição que tem marcado a atuação do Governo do Estado do Acre no que diz respeito à alegada valorização dos trabalhadores da floresta e ao fortalecimento de suas atividades, bem como ao modelo de desenvolvimento posto em prática, apontado como sustentável.

Enfatizo a contradição porque é, para dizer o mínimo, contraditório um grupo político construir toda uma estrutura de poder apoiado numa reclamada tradição de luta dos movimentos sociais de seringueiros, capitalizar politicamente a imagem e as vozes de lideranças como Chico Mendes e dizer que os princípios e valores que regem tal estrutura de poder são os mesmos desses movimentos, ao passo que a prática mostra exatamente o contrário. Como é possível ser herdeiro de uma experiência e, ao mesmo tempo, envidar todos os esforços para confinar, aniquilar, isolar, quando já não foi possível cooptar o que resta de suas manifestações e de seus agentes, como vem acontecendo com Dercy Teles e Osmarino Amâncio? Como se tem visto, é exatamente isso que vem ocorrendo, o que nos alerta para o elevado grau de cinismo a que chegou a comunicação política naquele estado. Aliás, como sabemos, isso não é exclusividade do Acre que, na verdade, segue a trilha de uma longa tradição nacional de cinismo na comunicação política (independentemente ou, para dizer melhor, contrariamente ao que ocorre na prática) o que, por sua vez, é indissociável das bases autoritárias de nossa formação sociopolítica. E por que a ênfase na comunicação política? O que seria a tão propagandeada florestania senão uma grande arquitetura discursiva construída pelo marketing político e pela propagada através de uma difusão midiática massiva apoiada no rigoroso controle dos meios de comunicação locais?

Mas voltando ao sindicato e às lideranças hoje perseguidas e isoladas no contexto do Governo da Floresta (denominação oficial adotada no governo do Acre), é fundamental nos perguntarmos sobre o porquê de tamanha discrepância entre discurso e práticas. Que interesses tão fortes estariam em jogo? A resposta pode estar justamente no modelo de desenvolvimento que se busca consolidar e que essas lideranças, fieis aos princípios que pautaram sua luta nesses últimos 30 anos, se recusam a legitimar por entenderem não ser o melhor para os trabalhadores e para a conservação da floresta, da qual dependem sua existência, a permanência de suas atividades e evidentemente sua identidade como sujeitos e como trabalhadores. Parece ser exatamente este o ponto chave de toda a disputa e das manobras covardes que vêm ocorrendo em Xapuri. Contrariamente ao que se possa imaginar sobre a importância de um simples sindicato de trabalhadores rurais no interior de um estado do interior do Brasil (de acordo com um comentário que li um dia desses num blog da Amazônia), o STR de Xapuri é de importância estratégica. No contexto dessa disputa por legitimidade do modelo embalado como sustentável, o sindicato dos trabalhadores de Xapuri é um instrumento dos mais convenientes: primeiro pelo que representa enquanto marco histórico da luta dos seringueiros daquele município contra o desenvolvimentismo calcado na madeira e na pecuária, nos governos da ditadura. Dispor do sindicato forneceria aos atuais agentes do poder estatal e econômico – de maneira enviesada, evidentemente – aquela relação com a herança dos movimentos que ninguém mais consegue perceber e que está cada vez mais difícil sustentar em público. Porém a serventia maior dessa entidade está no fato não só de permitir maior facilidade na atribuição de falas convenientes a ícones como Chico Mendes, por exemplo, mas no fato de poder dispor do “apoio” legitimador dos sujeitos que hoje ainda vivem e trabalham na floresta. Apoio este que, além de eliminar certos embaraços políticos, facilitaria a exploração madeireira implantada via políticas públicas como carro chefe desse projeto dentro das Reservas Extrativistas, numa dinâmica em que o próprio seringueiro tende a se tornar o madeireiro.

Com se vê, o STR de Xapuri (assim como o da vizinha Brasiléia) não é um “simples sindicato” e suas lideranças atuais – esses, sim, contemporâneos e companheiros de Chico Mendes – são ameaça ao projeto oficial, pois são os poucos representantes ainda atuantes daqueles sujeitos que figuram como objeto das falas oficiais presentes no discurso da florestania, mas que nele recusam se enquadrar.

Como uma das principais testemunhas das disputas aqui mencionadas, seria proveitoso tornar pública uma fala (áudio) de Dercy Teles feita no primeiro Simpósio de Linguagens e Identidades da Amazônia Sul Ocidental, realizado na Universidade Federal do Acre. Numa das programações constava uma mesa intitulada SERINGUEIROS E AGRICULTORES ACREANOS NO CENÁRIO DO MANEJO MADEIREIRO: QUEM FALA E DE ONDE FALA, composta por Miguel Jorge Martins (agricultor do Benfica), Osmarino Amâncio (seringueiro e agricultor da Resex Chico Mendes) e Dercy Teles (presidente do STR de Xapuri). O evento em si já prometia algo bastante interessante graças ao fato, incomum até então na UFAC, de três trabalhadores rurais serem ouvidos por uma platéia predominantemente acadêmica, lugar onde essas vozes geralmente não ressoam para além dos gravadores das pesquisas de campo de certos pesquisadores e nas publicações dos relatórios de pesquisa, mesmo assim lidos por um público muito restrito.

Iniciada a programação, falou Miguel de sua experiência no campesinato, muito boa fala, por sinal, e depois foi a vez de Dercy, que ali fiquei sabendo ter sido a primeira mulher a presidir um sindicato no Brasil, ainda na década de 80. Sem qualquer anotação, com a serenidade, a clareza e a firmeza dos que sabem o que dizem, Dercy começou sua análise do sindicalismo rural no Acre desde os anos dos maiores conflitos até os desafios atuais, quando, segundo ela, se caiu na armadilha de acreditar que os valores do movimento teriam chegado ao poder e que, portanto, não era mais necessário movimento, o que implicou a quase falência dos sindicatos e a desmobilização completa dos trabalhadores. Para Dercy, se os seringueiros hoje migram para a madeira e para a pecuária como atividades produtivas, primeiro, é porque há um estímulo oficial e, segundo, porque não há o necessário e prometido apoio às atividades tradicionais que, por precisarem da floresta para se reproduzir, são as menos impactantes.

Embora tenha acontecido há cerca de um ano e meio atrás, essa fala de Dercy já deixava bem claro o que está em jogo hoje na disputa pelo STR de Xapuri, apontando as motivações e salientando que não se trata de um processo recente, restrito a essa eleição.

Segue o áudio da fala dessa líder sindical que, juntamente com Osmarino, representam as últimas manifestações do que foi um movimento criativo, autêntico e que mudou temporariamente a dinâmica do avanço do capital sobre a floresta amazônica. Essa luta está se travando novamente agora.

Isac Guimarães

*Acreano, atualmente pós-graduando em comunicação pela Universidade Federal Fluminense


Clique aqui para ouvir intervenção de Dercy Teles – Presidente do STR de Xapuri, durante Simpósio na UFAC

image_pdfimage_print