As partes de lá do medo. As partes de cá dos sonhos.

Ainda no Acre escrevi, em 2005, que a Amazônia é o jardim do mundo…

A Amazônia não é o pulmão do mundo.
É o jardim do mundo.
Um dia levaram perfumes, temperos e seivas.
Em outro levaram as sementes.
Dia desses levaram brilhantes.
Depois, ou antes, animais e aves coloridos.
Não satisfeitos, agora levam as árvores inteiras,
só desgalham para parecer verde só o selo.
Só não levam os jardineiros, que sem temperos,
sem árvores e sem ouro,
empatam nas periferias das cidades e da floresta,
insistindo e replantando as flores.


Hoje, lendo e relendo o poema, sinto, no fundo, bem no fundo da alma (se é que ainda a tenho ou se é que um dia a tive), que a opressão, a violência, a dominação, a exploração, a expulsão e, no limite, a morte, apenas dão pequenas pausas como para acomodar as modas para depois, percebendo que nem todas e todos se “modificam” – que é outra expressão para entrar na moda – voltam, espiam a noite, arrombam as portas, intimidam, roubam o quase nada e…

Sim, só agora talvez tenha compreendido o sentido mais profundo do roubo da Amazônia: levar os perfumes, temperos, seivas, sementes, brilhantes, animais, aves, árvores inteiras… Não, não é esta a etapa derradeira. O “fim”, e só aí a vitória dos ricos estará completa, é o roubo das próprias gentes da Amazônia, ou pela expulsão e morte, ou pela “modificação” – outra expressão para a ação de entrar na moda, na moda do desenvolvimento sustentável. Sim: des-envolver tudo, todas e todos. Só assim tudo, todas e todos estarão consumados. E mais nenhuma flor será depositada na casa última de Chico. Nenhuma.

Porque, “Caboquinho” (seringueiro Nonato Venâncio Flores, expulso no último dia vinte de junho de sua colocação, por um fiscal do ICMBio apoiado pela polícia federal) não pode mais plantar flores. Só, e olha lá, árvores “teca” para a exportação. “É preciso, diriam, que todas e todos demos uma chance à floresta… deixando-a em paz”. A floresta sem gentes, é isso, no final das contas, que o mercado de outras gentes quer. Porque as gentes seringueiras, ribeirinhas e índias têm o “péssimo” hábito de querer “re-existir” – que é outra expressão para resistência – em meio às árvores, que hoje parecem valer mais que as gentes, que a história, que a memória, que as mortes dos “Chicos” todos, que os tacacás, que as macaxeiras, que os peixes, que as jabutis, que as onças, que o Mapinguari, que o Curupira…

Porque depois, ou um pouco antes, outras gentes resolveram arrombar a casa de Osmarino (Osmarino Amâncio, morador da floresta na colocação Pega Fogo, no seringal Humaitá, na Reserva Chico Mendes), levando, como ele mesmo disse, a “minha dormida, meus utensílios, motosserra, furadeira de estaca, roçadeira”. Só não levaram Osmarino porque estava na luta junto com outros seringueiros, na cidade, nas periferias, na floresta, no sindicato (engraçado: fazendo igual ao amigo e companheiro Chico, aquele, o Mendes, enterrado em Xapuri).

E tiram do ar (como tiraram do ar programa de rádio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, porque a oposição ganhou a eleição). E tiram da terra. E tiram da casa. E tiram do rio. E tiram da floresta… “Mas quem tira?” Pergunto eu desavisado de tudo, de todas e de todos. De longe, bem de longe, Caboquinho, Osmarino e todos os entes humanos e não-humanos da floresta, sussurram dizendo baixinho que os que tiram são os mesmos que põem os fiscais, a lei, os projetos de desenvolvimento sustentável, os governos das florestas, os mercados da madeira e de tudo não-madeireiro que interessa aos que tiram, e aos que põem. Só não interessam as mulheres e homens, que, desde Wilson, insistem em permanecer onde estão, sem arredar pé.

E se Osmarino tem medo, é porque tudo, todas e todos também devem ter. “Voltei a sentir medo no Acre”. Sim, Osmarino: o medo é parte das gentes que temem não a morte pela morte, mas temem serem o último homem ou a última mulher e, ao olharem para o mundo pela última vez, não verem nada além de mania, megalomania, florestania… e a floresta inteira, sem gentes, só para a “sustentabilidade”…

E hoje, também, li e reli Chico Mendes, que parece ao mesmo tempo tão perto e tão longe. “Conseguimos vencer, [o seringal] Cachoeira transformou-se numa conquista para os trabalhadores e num exemplo temido pelos grupos econômicos que querem destruir a Amazônia”. Chico disse isso no início de dezembro de 1988… o final já sabemos como foi.

E hoje, mais do que nunca, também pensei: “o que mudou, Chico?” O presidente é um ex-retirante, um ex-metalúrgico, um ex-sindicalista… A Amazônia vira a cada dia mais “desenvolvimento sustentável”… O Acre é governado já há onze anos pelo partido dos trabalhadores…

“O que mudou, Osmarino?”

E não deixe o medo tomar conta de tudo, pois, como disse o Chico, só “parte dos meus sonhos já foram realizados”.

A outra parte, Osmarino, ele espera que nós realizemos.

Do amigo Jones*
Dourados – Mato Grosso do Sul

*Jones Dari é doutor em geografia e professor da UFMS – campus de Dourados.

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